A saúde mais ou menos universalizada no Brasil – Parte 1: Impactos para o cidadão

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O povo brasileiro de modo geral padece de um grave problema de compreensão fática: a desconexão entre causa e consequência. Por isso, muitos creem que a mera existência de leis é capaz de, por si só, solucionar problemas.Não por acaso ouvimos todos os dias nas ruas, no rádio, na TV, nas redes sociais, enfim, em todo lugar, um anseio por leis penais mais duras para bandidos e corruptos, como se a simples "canetada" dos deputados, senadores e chefes dos executivos fosse capaz de resolver os problemas da nossa nação.

Outros querem a lei do "passe livre", como se os custos do transporte público fossem magicamente desaparecer pela simples existência de uma lei que o determine como sendo gratuito para o povo.

Não ignoro que as leis de matéria criminal são excessivamente brandas e merecem revisão, assim como concordo que o transporte público seja oneroso e precário, mas a simples existência de texto legal não é fator preponderante de mudança da realidade.

Esse grave problema de entendimento a que me refiro não é um fenômeno nada recente e nem exclusivamente brasileiro, embora aqui seja uma enorme ilha de tal raciocínio.

Em 1988, a Assembleia Constituinte decidiu inserir no texto constitucional uma garantia, ou seja, um direito de todo brasileiro, consistente no acesso universal e irrestrito a um sistema de saúde de qualidade. Vamos ler o art. 196, da nossa Lei Maior:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

O art. 197, imediatamente seguinte, de fato, informa que a execução de serviços de saúde pode ser realizada por particulares. Mas, ainda assim, percebam a força da dicção constitucional: "A saúde é direito de todos e dever do Estado"; "acesso universal e igualitário às ações e serviços".

Fazendo um paralelo com o que foi dito anteriormente, se a simples "canetada" fosse fator de solução de problemas, a saúde brasileira seria magnífica para toda a população e o mercado bilionário dos planos de saúde sequer existiria, pois quem seria louco de pagar por algo que é seu direito e dever do Estado?

Com efeito, a saúde é financiada com as contribuições (espécie de tributo) pagas à seguridade social, vulgo "INSS", além outros recursos da União, Estado e Municípios (art. 198, § 1º, da Constituição Federal), sendo todos eles corresponsáveis pela manutenção do sistema de saúde. Mas, mesmo com todas essas "vantagens", ainda assim qualquer pessoa que tenha condições de contratar um plano de saúde particular certamente o contratará.

Isso porque o Brasil é um dos únicos países do mundo que colocam a saúde pública nesse patamar de universalização e, como se viu em pesquisa realizada em 2013, ficou em último lugar em um ranking de 48 (quarenta e oito) países no que se refere à eficiência de sistema de saúde. Em outras palavras: o império da "canetada" não vai muito bem.

É óbvio que um sistema desses nunca poderia e nunca poderá funcionar adequadamente, mas aqui temos também o mau costume de usar as leis e até mesmo a Constituição como meras carta de aspirações, não como um documento sério e que regerá normas de aplicação efetiva. Mas, como já insisti, é assim que o povo quer e assim lhe foi dado.

O grande economista Thomas Sowell possui uma frase muito adequada a ilustrar a situação: "O fato de que muitos políticos de sucesso são mentirosos não é exclusivamente reflexo da classe política, é também um reflexo do eleitorado. Quando as pessoas querem o impossível somente os mentirosos podem satisfazê-las.".

Enfim, temos na nossa Constituição a garantia de que a saúde é direito de todos e dever do Estado.

Contrastando a isso, nos últimos dias do último ano passado o Superior Tribunal de Justiça julgou um caso em que um paciente processou o Estado do Rio Grande do Sul com o objetivo de que lhe fossem custeados os medicamentos para tratamento de sua doença.

Depois de decisões para todos os lados nas instâncias inferiores, a decisão do STJ pode ser sintetizada com o título da notícia que a divulgou ao grande público: "Estado não é obrigado a fornecer medicamento a paciente com boa condição financeira."

No julgamento, ficou claro que a divergência ocorreu apenas entre ministros que achavam que o paciente não era carente, de modo a poder arcar com as despesas médicas, e ministros que achavam que mesmo ele tendo posses, haveria a possibilidade de que o paciente tivesse que se desfazer de seus bens para custear o tratamento.

O primeiro problema é: o que é "não ser carente"? Se tenho um patrimônio milionário, mas gastarei todo esse patrimônio milionário para me tratar de certa doença, sou ou não carente?

Em qualquer caso, fica evidente que todos os ministros concordam que um paciente, pelo fato de ser "rico", ou por talvez não ser "carente", não tem direito ao tratamento constitucionalmente garantido. Altere-se, então, o artigo da Constituição Federal para "A saúde pode não ser direito de todos e dever do Estado".

A Constituição é clara em determinar como requisito o fato de ser carente de recursos para o provimento da assistência social, mas isso não tem relação com a saúde.

É evidente que a saúde pública não tem como ser bem prestada em prol de todos, coisa que se vê facilmente no cotidiano, mas a decisão judicial nega vigência a dispositivo constitucional expresso, contraria a validade da mais importante "canetada" legislativa de todas, por assim dizer.

É chegado o tempo de se pensar seriamente no que é a Constituição, pois é importante que ela seja uma verdadeira carta de direitos, não de meros anseios de realização em algum momento futuro ou incerto.

Não pretendo discutir aqui se é justo ou injusto que pessoas com posses tenham tratamento de saúde gratuito. Mas em nosso sistema jurídico a Constituição lhes garante isso como um direito, direito este que vem sendo sistematicamente negado pelo Estado, pelo seu sistema de saúde falido, e suprimido pelo Judiciário, que deveria ser, enfim, a última salvaguarda das leis e da Constituição.

Mas tudo o que foi dito o foi em relação à pessoa comum, à população como um todo. No meu próximo artigo, escreverei sobre como essa mentalidade impacta a atividade dos planos de saúde. 

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Emmanuel Ramos de Castro
Amante da literatura, poesia, arte, música, filosofia, política, mitologia, filologia, astronomia e espiritualidade.

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