O poder não muda ninguém

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Por, Vladimir Safatle .

“No Brasil, a arte de falar sobre corrupção costuma ser conjugada só na terceira pessoa. Corrupto é o outro” .

O sociólogo Francisco de Oliveira costumava contar uma história envolvendo Celso Furtado. Na época em que era presidente da Sudene, cuja sede estava no Recife, Furtado chamou Oliveira para irem juntos a uma reunião no Rio de Janeiro.

Depois da reunião, os dois foram para seus quartos de hotel. Quando chegou ao quarto, Chico de Oliveira recebeu uma ligação de Furtado: “Chico, acabo de entrar no quarto e vi que há duas camas aqui. Você poderia vir para cá e assim devolvemos a diária do segundo quarto”. De certa forma, creio que há gente que ainda não entendeu esta ideia simples: o que a população esperou da esquerda no poder é que ela começasse por querer devolver a segunda diária do hotel.

Quando os escândalos de corrupção estouraram de forma sistemática, não foram poucos os que procuraram “contextualizar” o problema, como se dar muita importância a eles fosse fazer o velho jogo do moralismo udenista. “Focar tudo no problema da corrupção é uma pauta da direita.”

Alguns não temeram em dizer que a corrupção era um dado intrínseco do capitalismo, não para porventura mudar o capitalismo, mas para tentar vender a ideia de que ela seria o preço a pagar para se operar no interior das falhas da democracia parlamentar.

Nessa explicação funcionalista crassa, havia uma dose inacreditável de cinismo. A descrição não servia para aumentar a indignação e recusa contra um sistema corrompido, no qual a política se submete aos interesses econômicos do momento, mas para justificar a acomodação subjetiva à lama.

Ao contrário, é hora sim de falar, e muito, sobre corrupção. É claro que, no Brasil, a arte de falar sobre corrupção costuma ser conjugada só na terceira pessoa. Corrupto é “ele”, o outro. A corrupção do partido que grita “corrupto” é outra coisa, não é assim tão grave.

Segundo essa lógica, o mensalão tucano não teve nada a ver com o mensalão petista. A compra de deputados feita por FHC foi “outra coisa”, assim como a corrupção no metrô de São Paulo: mesmo abrindo processos nas justiça da França e da Suíça, ela não justificaria uma reles CPI no Tucanistão, vulgo Estado de São Paulo. A corrupção do PT foi caixa dois, como sempre foi feito.

Todos nós conhecemos bem esses raciocínios. Mas não, meus amigos, a corrupção do seu partido do coração não é “outra coisa”. Ela é a “mesma coisa”. É por pensar assim que estamos nesta situação. Ela só terminará quando o último corrupto petista for enforcado nas tripas do último corrupto tucano.

Pois há de se mostrar que é possível falar contra a corrupção de forma ampla, geral e irrestrita. Lembrar que toda e qualquer corrupção é a destruição da noção de bem comum e, ao mesmo tempo, da possibilidade de falar em nome do bem comum. Ela destrói o ethos do enunciador que se quer anunciador do novo. Na política, tão importante quanto o que você fala é qual sua legitimidade. Por isso, a corrupção é sempre o começo do fim da política.

Como nos ensina Robespierre (que até onde consta não era alguém que “fazia o jogo da direita”), neste ponto não há atenuantes. Valeria lembrar que “contextualizar” a corrupção é mostrar uma ignorância fundamental a respeito do que é a política. Mais do que um embate a respeito da partilha do poder e da riqueza, a política é uma luta a respeito de formas de vida. Não apenas um problema de redistribuição, mas um problema ligado à possibilidade de criar formas de vida novas.

De maneira astuta, o filósofo italiano Giorgio Agamben um dia afirmou: “O verdadeiro problema da esquerda italiana é que eles, no fundo, gostariam de ter a vida que leva Berlusconi”. Era sua maneira de dizer: não é possível combater Berlusconi se você não quer recusar radicalmente uma forma de vida baseada na fixação doentia às ideias de propriedade, posse, bens e primado do indivíduo.

Uma vida que alguém como Berlusconi representa tão bem. Pois se você se deixa afetar da mesma forma que aqueles contra os quais combate, se você no fundo deseja da mesma forma, então chegará um dia que você fará as mesmas coisas. Esse é o verdadeiro sentido de uma bela frase de Pepe Mujica: “O poder não muda as pessoas, ele apenas mostra quem elas realmente são”.

Em um país que sempre teve de aturar uma elite rentista e ociosa, que vive de “patrimônios” e é especializada em tomar de assalto o bem público como se fosse posse privada, socializando dívidas e privatizando ganhos, ser revolucionário começa por ter decência em relação à função pública e ter respeito absoluto pelo bem comum. Por isso, vale a pena começar a governar devolvendo a diária do segundo quarto.

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Emmanuel Ramos de Castro
Amante da literatura, poesia, arte, música, filosofia, política, mitologia, filologia, astronomia e espiritualidade.

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