Por Bruno Barchi Muniz | Artigo | LBM Advogados
Ronaldo Bôscoli é conhecido como um dos pais da Bossa Nova e autor de muitos clássicos da música brasileira. “O Barquinho” talvez seja a composição mais famosa, mas, para mim, “Saudade fez um Samba” é insuperável.
Diz a história que Bôscoli frequentemente era chamado para fazer versões em língua portuguesa de “hits” estrangeiros. Quando tinha que partir de uma música muito ruim ou gerar uma música muito ruim, conta-se que ele próprio dizia ter sido contratado para “cometer uma versão”.
E a mim parece que seria extremamente saudável ao Direito se o STF tivesse a parcimônia necessária para não “cometer” decisões judiciais.
Só que essa parcimônia é o exato oposto ao desejo de imperar, cada vez mais saliente na Corte. E, em meu modesto entender, o novo julgamento sobre o “Rol da ANS”, na última semana, foi a maior demonstração jamais dada pelo Tribunal sobre esse desejo.
Vamos tentar traçar um breve histórico do “Rol da ANS” e como aqui chegamos.
Desde o advento da Lei dos Planos de Saúde, quase 30 anos atrás, inaugurou-se a discussão de se o rol de procedimento previsto pela ANS (agência reguladora do setor) seria taxativo ou exemplificativo.
Em outras palavras, se os planos deveriam realizar só aqueles procedimentos previstos no rol ou se aquela descrição era uma espécie de “cardápio mínimo” a orientar o consumidor sobre o que esperar, mas sendo, ainda, obrigados os planos a cobrir outros tratamentos de saúde que o usuário eventualmente necessite.
De um lado, as empresas do ramo dizem – com razão – que não haver limitações compromete até mesmo o cálculo de preço a ofertar ao consumidor, correndo o risco de serem obrigadas a fornecer tratamentos ineficazes e inadequados, abrindo margem até para o patrocínio do charlatanismo.
De outro, com tanta razão quanto, usuários destacam que não têm qualquer conhecimento médico e que possuem o plano para solucionar as questões de saúde que demandarem, e não para ingressarem em discussões profundas quando estão precisando de tratamento para doenças graves. Inclusive, sem exagero, compreender o teor do rol é certamente mais complexo do que aprender grego, aramaico ou qualquer língua exótica.
Apesar da insistência das empresas do ramo em afirmar que o rol era taxativo, a jurisprudência formada ao longo de quase 25 anos praticamente as massacrou nesse campo, formando entendimento muito consolidado de que o rol era exemplificativo.
Em 2022 o STJ, tribunal mais graduado para tratar da legislação federal, foi chamado a proferir decisão para encerrar o tema de uma vez por todas e decidiu de forma inusitada: que o rol era taxativo, mas com exceções.
Só que essas exceções eram tão amplas que se podia dizer que a regra acabaria por ser do rol como sendo exemplificativo. Na prática, provavelmente nada mudaria.
Mesmo assim houve uma comoção popular muito grande em torno do tema e, com muita velocidade, o Congresso alterou a Lei dos Planos de Saúde para afirmar, com todas as letras, que o rol era exemplificativo, fornecendo, ainda, critérios muito objetivos para o fornecimento de tratamentos fora do rol.
Raras vezes vi uma norma tão bem feita para resolver um problema sem criar novos, ainda mais considerando a nossa experiência como bons brasileiros.
Mas, como era de se esperar, não foram todos que gostaram dessa nova norma e a União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (Unidas) ingressou com ação no STF para questionar a constitucionalidade da norma.
Em primeiro lugar, o STF serve para analisar legislação em face da Constituição Federal e parece óbvio que uma lei federal que simplesmente regula critérios de cumprimento contratual não poderia violar a Constituição, já que ela simplesmente trata do tema da saúde de forma genérica.
Dito de outra forma, a questão da “constitucionalidade” da norma já era “forçar a barra”, uma tentativa de “tapetão”. A ação já deveria ter sido rejeitada por simples impossibilidade jurídica de analisar o seu conteúdo, já que o tema não é constitucional.
Mesmo assim, a ação não só foi julgada como foi acolhida para alterar os critérios estabelecidos em lei, coisa que obviamente não é da alçada do Poder Judiciário, já que somente a lei pode obrigar a fazer ou deixar de fazer o que quer que seja.
Enfim, ficou decidido que os requisitos para tratamentos fora do rol da ANS são os seguintes:
- O tratamento deve ser prescrito por médico ou odontólogo assistente;
- O tratamento não pode ter sido expressamente negado pela ANS nem estar pendente de análise para sua inclusão no rol;
- Não deve haver alternativa terapêutica adequada no rol da ANS;
- O tratamento deve ter comprovação científica de eficácia e segurança;
- O tratamento deve ser registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
É um pouco constrangedor ter que comentar algo que não deveria existir e que obviamente constitui invasão das prerrogativas destinadas ao Poder Legislativo, mas cabe o destaque de que quatro ministros tiveram o bom senso de reconhecer que o tema é contratual e que a lei já indica as exceções que não podem ser cobertas pelos planos de saúde, cabendo à ANS fixar critérios técnicos para a autorização de tratamentos fora do rol.
“Cometida” mais uma decisão, na próxima semana examinaremos e comentaremos os tais requisitos.
Bruno Barchi Muniz – é advogado, graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos, Pós-Graduado em Direito Tributário e Processual Tributário pela Escola Paulista de Direito (EPD), membro da Associação dos Advogados de São Paulo. É sócio-fundador do escritório Losinskas, Barchi Muniz Advogados Associados – www.lbmadvogados.com.br