Por Renan Truffi, Carla Araújo e Beth Koike | De Brasília e São Paulo
O setor de planos de saúde se movimenta para aproveitar o momento político favorável e tentar reativar um conselho governamental que poderá se sobrepor à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), entidade responsável pela regulação desse mercado. O objetivo é que o conselho possa deliberar sobre reajustes dos convênios, regular e fiscalizar operadoras, entre outras atividades que hoje são de responsabilidade da agência.
O Valor teve acesso à proposta de projeto de lei que pretende alterar a atual legislação do setor, publicada em primeira mão pelo jornalista Elio Gaspari nos jornais "O Globo" e "Folha de S. Paulo".
A iniciativa das operadoras parte da constatação de que o governo de Jair Bolsonaro tem se mostrado simpático à desburocratização e desregulação de setores importantes para a economia. Neste sentido, a ideia das operadoras é que o Conselho de Saúde Suplementar (Consu) exerça um poder superior ao da ANS.
A iniciativa não é nova. Essa possibilidade começou a ser gestada durante o governo Michel Temer, mas acabou se perdendo pelo caminho em meio aos escândalos que atingiram a gestão emedebista. Na ocasião, o governo ressuscitou o conselho, criado partir de uma Medida Provisória e esquecido desde 2001. A gestão emedebista conduziu, então, o então ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha (MDB-RS), para a presidência do Consu, aprovou uma atualização do regimento interno e definiu que a ANS seria apenas uma parte desse colegiado. Os esforços, no entanto, pararam por aí.
Segundo fontes, a ideia é patrocinada pela Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) e Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), que reúnem as empresas do setor, mas depende da boa vontade do Palácio do Planalto.
Após seis meses de gestão, o governo ainda não designou um nome para comandar o Consu e iniciar as reuniões que poderiam deliberar sobre as demandas represadas. A reportagem apurou que, por enquanto, o assunto não tem sido tratado como prioridade nem na Casa Civil e nem no Ministério da Saúde.
Uma fonte explicou que o assunto é visto como uma pauta do ex-ministro Ricardo Barros (PP-PR), hoje deputado na Câmara Federal, e não está entre as prioridades do atual mandário, Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS). Apesar disso, o tema conta com o entusiasmo do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
No mês passado, na estreia de seu podcast, Maia disse considerar "importante que a gente tenha um novo marco legal da saúde privada no Brasil. Nós sabemos que Municípios Estados estão falidos (…). Se a gente criar uma regulamentação ou até uma desregulamentação do setor privado, nós poderemos ampliar a base de brasileiros segurados de 40 milhões para 70 milhões, o que reduz a pressão sobre o SUS."
O presidente da Câmara afirmou ainda que a atual legislação dos planos de saúde tem muitas amarrações. "Uma empresa precisa ter centenas de procedimentos mínimos ambulatoriais. Acaba que o custo é muito alto. Às vezes se você tiver uma desregulamentação, e o brasileiro que tem uma renda menor possa ter assegurado em parte daquilo que ele gostaria, já reduz a pressão sobre o SUS", disse Maia, no post de estreia do podcast.
A proposta do projeto de lei, que pretende alterar as regras atuais do setor, privilegia o interesse financeiro das operadoras em detrimento dos direitos dos consumidores. A Fenasaúde nega a autoria da proposta, mas disse ontem ao Valor que o setor deve priorizar produtos economicamente viáveis.
Uma das mudanças propostas é que os usuários de planos individuais poderão ter reajustes diferenciados conforme seu perfil, região e histórico de uso. Hoje, a ANS aplica um reajuste único, cujo percentual é menor em relação ao praticado nos planos coletivos.
As operadoras querem que os reajustes dos planos passem a ser calculados também com base na nota técnica do usuário – trata-se de um indicador que leva em consideração o perfil de cada beneficiário e calculado com base numa complexa conta atuarial. Trocando em miúdos: como a nota técnica leva em consideração as características de cada pessoa, o reajuste passa ser diferenciado. Atualmente, os convênios têm aumentos anuais com base na inflação médica e frequência de uso do plano e por faixa etária.
A proposta do projeto de lei também possibilita às operadoras revisarem, a cada quatro anos, os critérios de reajuste por faixa etária. Nas regras atuais, o último reajuste por idade acontece aos 59 anos ao levar em consideração o estatuto do idoso.
Nos convênios médicos coletivos, que representam cerca de 80% do setor, um dos dispositivos destaca que "é facultado às operadoras não ofertar ou ainda negar a contratação de planos privados de assistência à saude que se enquadrem em perfis de risco previamente definidos".
O Consu também passaria a ser responsável pela definição do rol de procedimentos mínimos obrigatórios a serem cobertos pelos planos. Além disso, um dos pleitos é aumentar de dois para três anos o prazo de revisão do rol.
Questionada sobre a proposta do projeto de lei, Vera Valente, diretora executiva da Fenasaúde, negou que o setor seja o patrocinador da proposta que tem quase 90 artigos. "Desconheço esse documento, nunca vi. É papel do Congresso fazer um projeto de lei", disse Vera, destacando que as operadoras não estão fazendo nada na surdina.
A diretora executiva afirmou ainda que é legítimo por parte da Fenasaúde defender os interesses do setor e buscar produtos financeiramente viáveis. "Precisamos ter responsabilidade financeira, é relevante criar produtos que analisam a sinistralidade. A população só se preocupa com a questão financeira quando a operadora quebra", disse.
Sobre a intenção de desidratar a ANS e colocar o Consu acima dessa agência, Vera disse que não iria se pronunciar sobre o conteúdo do documento que afirma desconhecer. O artigo 85 da proposta sugere que o conselho passe a ter as seguintes funções: estabelecer e supervisionar a execução de políticas e diretrizes gerais do setor de saúde suplementar, aprovar o contrato de gestão da ANS, além de fixar diretrizes sobre aspectos econômico-financeiros, normas de contabilidade, parâmetros sobre capital e patrimônio líquido mínimos, reajuste de preço e modelos de remuneração, entre outros.
ATUALIZADO ÀS 10H30M
Itens da proposta de projeto de lei defendidos pelas empresas
Operadora poderá usar nota técnica (cálculo atuarial) para reajustar plano de saúde.
(Hoje o índice de reajuste é determinado pela ANS uma vez por ano);
Poder da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é limitado;
Conselho de Saúde Suplementar (Consu) passa a ser responsável pelo rol de procedimentos, reajuste de preço, supervisão da ANS, entre outros;
A portabilidade dos planos de saúde volt a ser permitida apenas na data de aniversário do contrato;
Prazo máximo para consumidor ser atendido é extinto. Hoje, prazo é de cinco dias para consultas médicas, por exemplo;
Prazo de revisão de rol de procedimentos aumenta de dois para três anos;
Possibilidade de cobrança de coparticipação e franquia, definidas por livre negociação;
Infrações são consideradas apenas em casos coletivos;
Multa a operadoras é limitada a R$ 1,5 milhão por infração;
Criação de regulação específica sobre prestadores de serviço (hospitais, clínicas e médicos);
SUS fica obrigado a avisar imediatamente à operadora quando beneficiário usar a rede pública de saúde;
Fim da exigência de substituição de um prestador de serviço por outro equivalente, quando a operadora faz mudança na rede credenciada de atendimento;
Plano de saúde individual pode ser cancelado por operadora em caso de fraude.
Raio X
Atualmente, 47,2 milhões de pessoas são usuários de planos de saúde no Brasil;
Desse total, 9 milhões estão em planos individuais;
734 operadoras de planos de saúde atuam no País.