No artigo de hoje, abordarei questões voltadas ao funcionamento das relações contratuais entre o consumidor e a operadora de planos de saúde, mormente em relação aos contratos de adesão.
A regulamentação da saúde complementar, pela legislação e pelos Tribunais brasileiros, tem interferido na formação dos negócios jurídicos relativos à prestação do serviço de saúde privado, com significativa perda da liberdade de contratar. Os contratos de adesão têm seu conteúdo frequentemente alterado pelo Poder Judiciário, normalmente de forma correta, para vedar a expansão do caráter egoísta dos pactos guiados pelo liberalismo econômico.
Assim, os contratos passam a ser norteados pelo princípio da solidariedade e, com isso, regidos pelo interesse social. Essa influência advém das garantias sociais constitucionais que não mais se limitam à área pública, permeando franco controle sobre a iniciativa privada. As regras contratuais são atravessadas pelos princípios e valores constitucionais que prezam pela função social do contrato, com preferência pela eficácia do direito fundamental à saúde em detrimento de outros valores patrimoniais, tais como o direito ao lucro e à viabilidade econômica das empresas.
A garantia da dignidade humana, do direito social à saúde e a justiça distributiva, defendidas pela corrente da funcionalização dos negócios jurídicos, prejudicam a sustentabilidade das operadoras de planos de saúde, pois a concretização destes valores sempre será priorizada pelo Poder Judiciário nas demandas surgidas, afinal, como poderia um magistrado preferir a obediência aos termos contratuais no lugar do direito à vida?
A vontade individual deixa de ser o foco, importando a relação coletiva, numa clara proteção ao elo contratual mais frágil, o que se revela em conformidade com os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor. Porém, deve ser entendido que o respeito à solidariedade pelos contratos dos planos de saúde não implica na prestação integral do direito à saúde por estas operadoras, na medida em que não é dever delas o oferecimento irrestrito do serviço de saúde, mas é papel do Estado brasileiro. Portanto, das empresas atuantes na saúde complementar só podem ser exigidas as prerrogativas acordadas contratualmente, sem que haja afronta à funcionalização dos negócios jurídicos, pois será observado o interesse social na elaboração da legislação que regulamenta tal setor.
Dessa forma, a funcionalização dos negócios jurídicos precisa observar alguns limites. A atribuição da função social aos contratos não fundamenta a exigência universal do direito à saúde dos planos, mas somente deverá vedar situações vexatórias e de desrespeito à condição de hipossuficiência do consumidor usuário, sem retirar o caráter privado dos contratos firmados.
O Conselho da Justiça Federal aprovou na I Jornada de Direito Civil o Enunciado n. 23 que explica muito bem o tema: ?Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana?. De tal modo, a autonomia da vontade permanece, podendo sofrer afetação. Vale ressaltar que a redução do alcance dessa autonomia deve ser analisada cautelosamente pelo Poder Judiciário, sob pena de violar um dos fundamentos do direito privado.
O dilema entre o interesse financeiro e o direito à vida e à saúde foi tratado pelo Ministro Celso de Mello no julgamento do RE 393.175-AgR/RS, no qual restou decidida a impossibilidade de prevalência do interesse econômico e secundário do Estado sobre o direito inalienável à vida, sendo o Estado do Rio Grande do Sul condenado à prestação integral dos medicamentos necessários à saúde dos indivíduos. Neste caso, portanto, foi condenado um ente federativo à prestação integral do direito à saúde de sua população, o que jamais pode ser aplicado às demandas envolvendo operadoras de planos de saúde, protegidas pelo direito à propriedade, ao lucro, à segurança jurídica e à obediência ao ato jurídico perfeito.