Ao leitor que acompanhou a série de artigos com o título acima, agradeço a paciência e me desculpo por voltar nesse assunto, que até já parece repetitivo, mas tenho um justo motivo.
Escrevi a primeira parte da série de artigos na manhã do dia 28/01/2015.
Achei que o tema merecia maior desenvolvimento, resultando na elaboração do artigo em três partes, finalizados todos no mesmo dia, mesmo que a publicação fosse futura.
Acontece que no dia 29/01/2015, apenas um dia depois de concluir a série de artigos, foi publicado pela Agência Câmara Notícias, canal oficial da Câmara dos Deputados Federais, uma notícia com o seguinte título: Proposta obriga empregador a pagar plano de saúde para trabalhadores.
Transcrevo abaixo parte da notícia (para ver na íntegra, (clique AQUI):
Está em análise na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 451/14, do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que torna obrigatória a concessão de plano de saúde a trabalhadores urbanos e rurais por parte do empregador. A PEC acrescenta o dispositivo na lista das garantias fundamentais dos trabalhadores previstas no artigo 7º da Constituição. (…)
De acordo com a PEC, os trabalhadores domésticos também terão direito ao plano de saúde, mas, nesse caso, o benefício dependerá ainda de regulamentação em lei. (…)
Eduardo Cunha informa que se baseou no artigo 196 da Lei Maior, que proclama o direito de todos à saúde. Ele argumenta que, para garantir a validação desse direito, é necessário que haja ações e serviços de promoção do bem-estar da população.
"Por isso, entendo que o trabalhador urbano e rural deve ter como garantia fundamental plano de assistência à saúde, oferecido pelo empregador em decorrência de vínculo empregatício", afirma. (…)
O texto da notícia informa que a intenção é dar mais uma "garantia fundamental" ao trabalhador, consistente na saúde.
Ora, mas se o trabalhador é, antes de trabalhador, um ser humano, o direito à saúde já lhe é constitucionalmente uma garantia! Qual a necessidade de tal dispositivo, nesse sentido?
A seguir é que as intenções se revelam: o Deputado Eduardo Cunha relatou ter se baseado no artigo 196, da Constituição Federal, argumentando que para garantir o direito à saúde, é necessário que o trabalhador urbano, inclusive doméstico e rural, devem ter plano de saúde, custeado pelo empregador em decorrência do vínculo empregatício.
Apenas para percebermos o quão ilógico é isso, vamos relembrar o texto do art. 196, da Constituição Federal:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Veja-se: "A saúde é direito de todos e dever do Estado". E, para os senhores deputados, aparentemente, o dever do Estado se submete a fazer emendas constitucionais que transfiram ao particular as responsabilidades determinadas constitucionalmente ao Estado.
A opinião exposta nessa matéria é o verdadeiro "quadrado redondo". Sendo, na melhor das hipóteses, uma confissão de incapacidade estatal de gerir o SUS. Ora, a própria reportagem afirma que apenas assim é possível a validação do direito à saúde!
Se assim é verdade, que se tenha a coragem de falar a verdade e elaborar uma PEC alterando o próprio conteúdo do art. 196. Sugiro o seguinte texto: A saúde é direito de todos e dever dos respectivos empregadores, empresas do ramo da saúde, planos de saúde particulares, hospitais e médicos, que deverão custear e suportar eventuais prejuízos no cumprimento de suas funções.
Para o mercado dos planos de saúde, essa obrigatoriedade de se fornecer planos aos empregados parece boa, pois praticamente toda a população demandará seus serviços. Ao mesmo tempo, será ruim, justamente porque toda a saúde demandará seus serviços.
Do ponto de vista jurídico, como ficarão os critérios para recusa de segurados? A ANS fará alguma regulamentação? Serão os planos de saúde obrigados a contratar com qualquer pessoa em qualquer condição, já que é obrigatória a contratação decorrente da relação de emprego?
E se o plano de saúde recusar o empregado, por razão de doença preexistente ou qualquer outro, o empregador estará (repare na gravidade da situação) descumprindo garantia fundamental dos empregados?
E os processos judiciais que hoje já existem por alegação de falta de cobertura? Se toda a saúde será privada, todos os planos terão que abranger toda sorte de tratamento e para todos?
Lembremos que a margem de lucro dos planos de saúde divulgada é em torno de 1% do faturamento. Por mais dinheiro que esse mercado movimente, o percentual de lucro parece relativamente frágil, podendo ser desequilibrado com alguma facilidade em virtude de enxurradas de processos judiciais.
Poderá se argumentar que empresas de telefonia, por exemplo, possuem essa situação e sobrevivem. É verdade, mas os custos de telefonia são contados em centenas de reais para a grande maioria dos usuários. Tratamentos de saúde estão sempre na casa dos milhares de reais, podendo sem grandes dificuldades atingir centenas de milhares. Isso tudo sem contar as possíveis indenizações por danos morais, também na casa dos milhares de reais.
Não creio que seja o local para discutir sobre os impactos nitidamente nocivos à relação de emprego e seu custo, principalmente na área rural e para empregados domésticos, mas é chegada a hora de se decidir o que fazer com o conteúdo da Constituição para a área da saúde: de quem será a responsabilidade pela universalização da saúde?