Semana passada tive a oportunidade de conversar longamente com um amigo historiador, uma das pessoas mais cultas que conheço. Falávamos sobre o Egito Antigo.
Ele me contou que assim como os faraós eram sepultados em tumbas ricamente adornadas, com metais e pedras preciosas, aqueles menos abastados e menos importantes também buscavam um sepultamento considerado digno. Como não eram tão abastados como os reis, suas tumbas eram feitas de barro, mas também enfeitadas com desenhos feitos por artistas, com semelhança ao que se realizava nos demais monumentos egípcios.
E, sobre isso, ele comentou que cerca de 25, 30 anos atrás realizou uma exposição com muitos achados arqueológicos do Vale do Nilo. Dentre eles, havia uma grande diversidade de fragmentos de tumbas, que possuíam em comum um mesmo símbolo: Ouroboros, que é aquela serpente que, em posição circular, morde a própria cauda.
Como nos ensina o grande Mário Ferreira dos Santos, nenhum símbolo possui significado unívoco, mas uma pluralidade de significados. E Ouroboros, naquele contexto, seria um símbolo de a vida como um eterno retorno. Não importava o que o indivíduo fizesse, ele sempre retornaria ao ponto de partida. Um ciclo visto de forma viciosa.
Era, na verdade, um símbolo de uma prisão que eles entendiam acometer o ser humano enquanto estivesse vivo. E que a morte, afinal, seria a libertação daquela prisão.
Ouroboros era colocada ali, portanto, como uma forma de demonstração de que o indivíduo a havia vencido quando deixou esta vida.
Pois bem.
Essa semana li no Blog do Corretor uma notícia inicialmente publicada no jornal O Estado de S. Paulo, com o seguinte título: "Startup brasileira do ramo de saúde capta dois milhões de euros na Espanha".
O texto relatava a ampliação de startups no mercado de saúde brasileiro, que visavam atender pessoas que não possuem dinheiro suficiente para pagar o preço de um plano de saúde, mas que também não desejavam encarar o SUS.
O mercado de saúde é uma Ouroboros no Brasil. Assim como todo tipo de mercado, talvez.
Os planos de saúde possuem produtos muito desejados (demanda) mas há pouquíssimos players no mercado, de modo que não há como escapar da mesma "meia dúzia". Falta, portanto, oferta. E mercado. E concorrência.
Mas os planos de saúde não são caros no Brasil apenas em razão da baixa oferta de produtos, que obriga os consumidores a sempre buscarem os mesmos de sempre. O grande motivo dos preços altos se vincula ao custo do serviço em si e, mais ainda, aos custos jurídicos ou, melhor dizendo, da insegurança jurídica.
Os contratos de plano de saúde em quase a totalidade dos casos possuem traços leoninos e nulidades quase caricaturais, de tão evidentes. Mesmo assim elas são colocadas, contra os consumidores.
Estes, por sua vez, muitas vezes pedem muito além do que o contrato prevê ou do que a equivalência da prestação que pagam. E o Judiciário aceita. Mas, por quê?
Porque certamente o juiz não aprecia ver um contrato leonino e cheio de nulidades e porque o material jurídico que tem à mão, que é o Código de Defesa do Consumidor, conflitará sempre com o que esse tipo de contrato normalmente prevê como direito e obrigação.
No campo legislativo, a lei dos planos de saúde de 1998 quer se sobrepor ao Código Consumerista para fins desses tipos de contratos, mas isso conflita com a Constituição Federal, no que tange à proteção ao consumo.
No campo normativo infralegal a ANS emite normas como quem dá milho aos pombos. Mas todos, inclusive os juízes, sabem que o órgão, a pretexto de regular os direitos dos consumidores, já foi "capturado" pelas empresas do ramo – "captura" é a desvirtuação pela tomada interna da entidade criada para buscar o interesse público, passada ao atendimento a grupos que atuam naquele setor econômico específico.
Por isso, em todos os pontos da cadeia desse serviço, do consumidor ao prestador, passando pelos fiscalizadores e também pelos julgadores, todos sabem que todos estão enganando a todos, fazendo com que todos sejam prejudicados, pois o serviço se torna caro para quem quer consumi-lo e ineficiente quando se precisa tomá-lo. Do ponto de vista das empresas, um contrato com valor baixo pode se tornar uma bomba relógio a ser detonada por decisão judicial, e o que se recebe não é suficiente para cobrir os custos daquele próprio contrato.
Eis pois a Ouroboros do mercado da saúde, pois a causa e efeito ocupam os mesmos polos e polos distintos simultaneamente, levando a um ciclo vicioso que se fecha em si mesmo, aprisionando tanto os consumidores quanto as empresas do ramo e os agentes paralelos a essas relações.
Assim como no Egito Antigo, será que só resolveremos essa questão morrendo?