A sacralidade das urnas eletrônicas

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Nos países que seguem a tradição jurídica inglesa da common law existe um brocardo jurídico que, traduzido, diz o seguinte: "todo mundo tem o direito de ter seu dia na corte".

Em outras palavras, significa que qualquer pessoa pode ser acusada e processada judicialmente; de outro lado, quem é processado e acusado judicialmente tem o direito de se defender, se justificar e se explicar.

Apesar de o brocardo ter origem inglesa, todas as democracias modernas, inclusive as que não seguem a common law, garantem esse direito.

Aqui no Brasil, constitucionalmente falando, esse brocardo talvez esteja despejado entre os princípios da Garantia de Acesso à Jurisdição (direito de se obter uma resposta do Judiciário), do Contraditório (direito de contradizer o que se lhe é imputado) e do Devido Processo Legal (direito de receber um julgamento que tramite de acordo com as leis aplicáveis).

Acontece que no Brasil as coisas nem sempre funcionam como no resto do mundo e, como de habitual, há exceções à regra.

Aqui, há certa coisa que não tem o direito de ter o seu dia na corte. Não pode ser acusada e nem precisa se defender.

Quem seria este ser acima de tudo ou de todos? Seria o próprio Deus?

Não. Aqui, o sujeito inatingível, inalcançável, verdadeiramente sagrado é uma maquininha: a urna eletrônica.

A verdade é que a urna sempre foi chamada popularmente de pouco confiável e suscetível a fraudes.

A pouca confiabilidade se refere à possível fragilidade do sistema eletrônico. As fraudes se referem às… bem, às fraudes.

Nas eleições do primeiro turno deste ano, houve relatos generalizados de problemas com as urnas, por todo o país. Muitos disseram que a votação se encerrava antes da confirmação da escolha para o cargo de Presidente da República. Só na seção onde eu mesmo voto, havia duas ocorrências do tipo por volta do meio-dia.

Houve também outros problemas relatados não só com as urnas, mas com a apuração dos votos, especialmente nas regiões sudeste e nordeste.

Isso significa que há fraude? É claro que não. Milhões de motivos podem causar os milhares de problemas narrados.

É razoável que aconteçam tantos problemas em meio às eleições para cargos federais e estaduais no maior país da América Latina? No meu entender, não.

Cerca de dois mil anos atrás o Imperador Júlio César esclareceu sua esposa, Pompéia:

À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta.

Voltando para o Novo Mundo, em 2018, as urnas eletrônicas até podem ser honestas, mas não parecem honestas, absolutamente.

Uma pesquisa realizada nos últimos dias de 2017 revelou que mais de 30% da população não confia em urnas eletrônicas. Não conheço dados atualizados, após o primeiro turno.

Enfim, o que salta aos olhos é a seguinte pergunta: por que a população deveria confiar nas urnas eletrônicas?

Sempre que há algum questionamento sobre possibilidade de erro, falha ou fraude, qual deveria ser a conduta? Investigar. Mas o que é feito?

Algum membro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) ou do MPE (Ministério Público Eleitoral) ou o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) ou até mesmo o Ministro da Segurança Pública vem a público dizer: "garanto que as urnas são confiáveis".

Ou seja, a única garantia que realmente se tem da confiabilidade dos aparelhos é a palavra de alguns poucos burocratas.

E os argumentos deles, quais são?

"As urnas são testadas e aprovadas", sempre pelo TSE, órgão que realiza e se autofiscaliza sobre a confiabilidade de seus próprios atos, nas eleições e das urnas.

"Nunca houve comprovação de fraudes". Esse é o argumento mais interessante de todos: como você pode comprovar ou mesmo refutar uma coisa se é proibida a investigação sobre o objeto?

Não é demais se lembrar que Raul Jungmann, Ministro da Segurança Pública, ameaçou imputar crime de falsidade ideológica a quem produzisse "notícias falsas" sobre as urnas eletrônicas. Em outras palavras, quem deveria investigar denúncias de falhas, fraudes e problemas semelhantes ignora o conteúdo da denúncia e passa a investigar, pasmem, o denunciante!

Cerca de um mês antes da eleição, um juiz que determinou perícia sobre urnas eletrônicas foi afastado do cargo, sob o argumento de violação de competência e de deveres funcionais. Em processo administrativo, poderá ser até aposentado compulsoriamente.

Como dito antes, se pelo menos 1/3 do eleitorado desconfia das urnas, seria dever de qualquer autoridade séria em regime democrático tornar todo o processo mais transparente. Contratar auditorias externas independentes, especialistas estrangeiros, demonstrar publicamente o funcionamento do aparelho, disponibilizar o equipamento para que qualquer interessado visse e testasse, para liquidar qualquer dúvida sobre a confiabilidade.

Ao contrário disso, o que nossas autoridades têm a nos oferecer? O bom e velho "la garantía soy yo". E ai de quem ousar desconfiar dessa garantia e deste objeto tão sagrado!

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Emmanuel Ramos de Castro
Amante da literatura, poesia, arte, música, filosofia, política, mitologia, filologia, astronomia e espiritualidade.

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