Não se tem dúvida de que saúde pública é um problema obviamente público, logo, do Estado, sendo ainda mais enfático no regime constitucional adotado no Brasil.
Assim, os diversos entes públicos, nas diversas esferas de governo, têm a obrigação de atuar diretamente para evitar a propagação de doenças contagiosas, bem como outras questões de saúde pública.
Porém, o que acontece, do ponto de vista jurídico, se o Estado não atuar ou não conseguir impedir a propagação de doenças? Existe direito a amparar o grupo de pessoas que adoeceu ou sofreram prejuízos?
Quando falamos nesse dever estatal de atuar diretamente para evitar danos, falamos de forma ampla, nos referindo tanto de questões atinentes à proteção da pecuária, por exemplo, como nos casos de contenção de epidemias de febre aftosa ou "vaca louca", como nas hipóteses de proteção à saúde humana, podendo se citar o combate ao H1N1, dengue e, mais recentemente, zika e chikungunya. O que podem fazer os lesados ou adoecidos?
De maneira clássica, tem-se que a responsabilidade civil extracontratual do Estado, ou seja, o dever de o Estado indenizar em caso de prejuízo de terceiros, é objetiva, de modo a bastar o dano, não se discutindo se houve dolo (intenção de praticar o dano) ou culpa (dano em decorrência de negligência, imprudência ou imperícia). Trata-se, portanto, de esfera de responsabilidade bastante ampla.
Há, por outro lado, causas que excluem ou atenuam a responsabilidade do Estado. Para o que estamos comentando, discutiremos apenas uma delas: a força maior.
Mesmo sendo técnico, o livro Direito Administrativo, da Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro é muito claro e didático sobre isso, razão pela qual vamos transcrevê-lo:
"Força maior é acontecimento imprevisível, inevitável e estranho à vontade das partes, como uma tempestade, um terremoto, um raio. Não sendo imputável à Administração, não pode incidir a responsabilidade do Estado; não há nexo de causalidade entre o dano e o comportamento da Administração.
Já na hipótese de caso fortuito, em que o dano seja decorrente de ato humano, de falha da Administração, não ocorre a mesma exclusão; quando se rompe, por exemplo, uma adutora ou um cabo elétrico, causando dano a terceiros, não se pode falar em força maior.
No entanto, mesmo ocorrendo motivo de força maior, a responsabilidade do Estado poderá ocorrer se, aliada à força maior, ocorrer omissão do Poder Público na realização de um serviço. Por exemplo, quando as chuvas provocam enchentes na cidade, inundando casas e destruindo objetos, o Estado responderá se ficar demonstrado que a realização de determinados serviços de limpeza dos rios ou dos bueiros e galerias de águas pluviais teria sido suficiente para impedir a enchente.
Porém, neste caso, entende-se que a responsabilidade não é objetiva, porque decorrente do mau funcionamento do serviço público; a omissão na prestação do serviço tem levado à aplicação da teoria da culpa do serviço público (faute du service); é a culpa anônima, não individualizada; o dano não decorreu de atuação de agente público, mas de omissão do poder público (…)."
Trazendo para nosso campo de discussão, acima proposto, percebe-se que, a princípio, a existência de um agente biológico se aproximaria da "força maior", excluindo a responsabilidade do Estado (ou da "Administração").
Por outro lado, se ficar comprovado que o Estado negligenciou o que lhe cabia fazer nas ações de combate e prevenção a doenças, ele poderia, sim, ser responsabilizado pelos danos causados à população.
Sobre isso, o Tribunal de Justiça de São Paulo examinou, recentemente, um caso curioso, em que um homem processou o município por ter contraído dengue. Argumentou justamente a omissão da Prefeitura em realizar ações contra a doença.
O Tribunal afastou a pretensão do homem, mas vale registrar as razões de julgamento, relatado pelo Desembargador Paulo Magalhães da Costa Coelho (Apelação nº 0001648-47.2014.8.26.0156):
"Conforme se extrai dos autos, a epidemia de dengue não se limitou à municipalidade de Cruzeiro, abrangendo, também, outros municípios da região. Em razão disso, deveria o apelante, ao menos, haver demonstrado que contraiu a enfermidade na referida localidade, mas não o fez. Nesses termos, resta a conclusão de que as alegações foram incapazes de formar a convicção de que tenha havido conduta efetivamente apta a ensejar o dano por ele experimentado, motivo pelo qual não há como caracterizar a responsabilidade civil”.
Dessa forma, fica claro que, no aspecto jurídico, o Estado pode, sim, ser responsabilizado em caso de contágio de doença. Por outro lado, a prova da omissão do poder público em combater e tomar medidas preventivas caberá a quem alegar, ao mesmo tempo em que caberá a este a prova de qual a localidade onde veio a sofrer o dano.