O ano começou pra valer com o fim do carnaval. E em plena Quarta-Feira de Cinzas o governo, através da Receita Federal do Brasil (RFB), já fez publicar mais uma norma absurda, daquelas que fariam qualquer democracia séria estremecer. Mas, como aqui é a terra do carnaval e onde tudo se ajeita, muito vale esse tipo de blefe, pois muitas vezes ele passa facilmente pelos tribunais. E, quando não passa, tem sempre o STF, cada vez menos interessado em defender a Constituição e mais interessado em entrar no jogo do poder.
Apenas a título histórico, lembramos que o STF, cerca de dois anos atrás, depois de quinze anos de tramitação, considerou constitucional uma norma absolutamente inconstitucional que permite à RFB acessar dados bancários e informações congêneres de contribuintes sem ordem judicial. Foi o fim do sigilo bancário. Não à toa os poderosos agora escondem dinheiro em malas, vide Geddel Vieira Lima.
Uma pena que nós, pessoas normais, não tenhamos esse privilégio.
Essa norma a que me refiro talvez tenha sido o primeiro grande golpe à Constituição nesse sentido. Foi editada através de medida provisória no ano de 2001, ainda sob o longínquo governo de Fernando Henrique Cardoso. E isso encorajou os demais governos a praticarem abusos de todo gênero.
O mais recente, publicado na Quarta-Feira de Cinzas, permite à Fazenda Pública realizar o bloqueio de bens de devedores inscritos na dívida ativa da União, bloqueio este que será feito independentemente de ordem judicial. Na verdade, pasmem, poderá ser feito em período pré processual, quando já há a inscrição em dívida ativa, antes mesmo que ocorra o ajuizamento de Execução Fiscal para a efetiva cobrança do débito.
Explicando um pouco melhor o roteiro, a partir de junho/2018, o contribuinte inscrito em dívida ativa será notificado para: 1) pagar; 2) parcelar; 3) pedir a revisão da dívida (se defender) ou; 4) apresentar algum bem como pagamento ou garantia.
Fosse apenas isso, não seria em nada contrário ao Direito. Na verdade, o item "4" parece melhorar consideravelmente o panorama das cobranças fiscais, tendo em vista que, apesar de a legislação prever que o pagamento de débitos possa se dar através de bens, sendo isso inclusive uma regra do Direito Processual Civil, na prática, a União não aceita nada que não seja dinheiro. Esperamos que possa ser o início de uma boa mudança.
Mas o maior problema vem depois: se o contribuinte não tomar uma dentre essas quatro providências ou se uma delas for usada e acabar se esgotando, a RFB poderá proceder à "averbação dos bens nos órgãos de registro", além de protestar o devedor.
O protesto do devedor fiscal é absolutamente ilegal, embora alguns Tribunais, inclusive superiores, o admitam. O TJ/SP tem sido um dos poucos a proteger o contribuinte e honrar a lei.
A tal "averbação", que é um bloqueio de bens, é feita sem qualquer participação judicial, apenas constrangendo aqueles que detenham a informação de bens do contribuinte. Ficarão na mira os bancos, cartórios de registro de imóveis e DETRAN, principalmente. E nenhum deles vai comprar briga com a RFB para proteger bens que nem seus são, mas dos contribuintes.
Se você tem um crédito com alguém, seja um aluguel não recebido, um salário não pago ou um pagamento não liquidado, experimente, pela via judicial, obter uma decisão judicial que bloqueie de cara os bens do devedor. É praticamente impossível. E por quê? Porque vigora a presunção de inocência, presunção de que a outra parte deva ser primeiro ouvida para depois se proceder ao julgamento e, ao final, aí sim, se for o caso, expropriar bens do devedor para saldar o débito.
O Judiciário, a bem da verdade, é até muito ineficiente nesse aspecto, poderia ser um pouco mais sensível ao fato de que existem milhares de credores apenas com o título, sem bens dos devedores para perseguir.
Só que a situação da RFB é o radicalmente oposto. Agora ela passa a ter muito mais do que uma mera presunção de veracidade a respeito de seus atos. Passa a haver uma verdadeira coação em meio a inúmeros tributos que vêm sendo declarados inconstitucionais, autuações temerárias e "modulações de efeito" do STF, que, na prática, são a autorização para o Estado não devolver para você o que lhe tomou indevidamente.
Em entrevista que li na semana passada, um Procurador da Fazenda argumentou que o intuito é proteger terceiros de boa-fé, que possam vir a adquirir bem de alguém que seja devedor do Estado. É comovente o cuidado que o governo tem com o contribuinte, não é mesmo? Só não é mais comovente do que oportunista, em vista do que os Tribunais têm entendido sobre o assunto.
Já há duas ações no STF questionando a constitucionalidade dessa norma, mas, ainda que o contribuinte vença, demoraremos até uma decisão final. E, nesse período, ficaremos ainda mais à mercê do Estado.
Já temos que esconder a carteira ao andar por aí, em razão da violência das ruas. Agora teremos que fazê-lo por muitos outros motivos.