Recentemente, a questão sobre o uso da “fosfoetanolamina sintética” virou discussão geral não só no campo de saúde ou jurídico, mas em toda a sociedade.
De acordo com o que fora noticiado, uma pessoa ingressou na justiça pleiteando a concessão dessa substância para tratamento de câncer. Porém, não existem estudos ou maiores evidências sobre a eficácia do produto ou mesmo sobre eventuais efeitos colaterais.
E a justiça concedeu a pretensão. Ao sopesar o direito à saúde, constitucionalmente consagrado, com as normas que regulam a ética médica e até mesmo a proteção da saúde pública, venceu aquele que, talvez, seja uma última esperança a um desesperado.
Mesmo sem conhecer maiores detalhes do caso concreto, cabe a reflexão: a concessão, pelo Judiciário, de livre acesso a substâncias cuja eficácia e repercussões são desconhecidas, ou não são completamente conhecidas, está de acordo com o Direito?
Longe de julgar a correição ou não desta decisão específica, o precedente que ela abre é bastante perigoso: para um desesperado, qualquer mínimo sinal de salvação poderia ser agarrado com unhas e dentes, obtendo-se, por via judicial, um direito de acesso a um produto cujo efeito real é verdadeira incógnita.
Não é difícil imaginarmos que um charlatão fabrique aquelas já conhecidas pílulas de farinha, ou até mesmo com quaisquer substâncias inúteis para tratar doenças e, propagandeando que elas são capazes de curar qualquer coisa, lance um marketing específico aos consumidores para que ingressem em juízo para obter esse medicamento, alegando que a ANVISA não os libera por lobby farmacêutico ou o que quer que seja.
Mais ainda, esse charlatão pode noticiar ao mercado “pesquisas” que indicam 100% de eficácia do seu medicamento, com depoimentos e tudo mais! Quem poderia contestá-lo?
Assim, os doentes, não apenas aqueles ignorantes, mas, provavelmente, aqueles desesperados, poderão acreditar na oferta e fazer de tudo para buscar acesso a esse medicamento. E quem pagará a conta?
Obviamente que o plano de saúde, caso a pessoa o possua, ou os cofres públicos, através do SUS.
O tão caro e escasso dinheiro público, já pouco amado por nossos administradores públicos, passaria a ter mais um sistemático campo de perdas.
Não se está de qualquer forma advogando que devemos pensar de forma utilitarista e abandonar nossos doentes. Ao contrário, todos os esforços devem ser direcionados para a cura e o bem estar até quando a inevitável morte chegar.
Mas isso não significa de qualquer modo tomar posturas sem conexão com a realidade, fazendo isso, ainda, com o dinheiro dos outros ou mesmo com o dinheiro de todos.
Para aclarar um pouco mais todo o nosso pensamento, lanço mão da excelente matéria de Cláudia Collucci, publicada na Folha de S. Paulo em 15/10/2015 (para ler, clique aqui), intitulada “Decisão da Justiça abre precedente para charlatanismo na medicina”.
“É compreensível que doentes terminais de câncer recorram a promessas milagrosas de cura, mas é temerário quando o órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro endosse essa busca insana e obrigue o Estado a fornecer tais “poções mágicas”.
O caso em questão é a decisão do ministro Edson Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal), em liberar o fornecimento da fosfoetanolamina sintética, substância produzida experimentalmente na USP, mas que nunca passou por testes clínicos e muito menos tem o aval da agência reguladora (Anvisa).
A decisão foi acatada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que antes havia suspendido liminares que autorizavam a entrega da substância. Uma das justificativas do desembargador José Renato Nalini é a de que “não se pode ignorar os relatos de pacientes que apontam melhora no quadro clínico.”
Vamos então liberar tudo o que as pessoas relatam como substâncias capazes de curar o câncer? O cogumelo do sol? O bicarbonato de sódio? O suco de babosa? A folha de graviola?
Vamos rasgar os manuais de ética em pesquisa, passar por cima de todas etapas que envolvem o desenvolvimento, a aprovação e a comercialização de um novo medicamento? Vamos fechar as agências regulatórias?
Do ponto de vista jurídico, o caso tem uma contraposição de princípios fundamentais, como bem lembrou Nalini: de um lado está o resguardo da legalidade e da segurança dos remédios, do outro a necessidade de proteção do direito à saúde.
Em relação à fosfoetanolamina, prevaleceu o direito de o paciente ter acesso a uma substância sem respaldo algum da medicina baseada em evidência. Abriu-se aí um perigoso precedente para o charlatanismo.
Estima-se que a quantia de dinheiro gasto no mundo só com o charlatanismo oncológico passe de US$ 1 bilhão.
O desejo de cura para o câncer leva muitas pessoas a procurarem tratamentos não convencionais, a retardarem ou até desistirem dos tratamentos convencionais.
Foi o que ocorreu com o empresário Steve Jobs, fundador da Apple, que retardou a cirurgia do câncer de pâncreas para aderir a um tratamento com ervas, o que teria agravado o seu quadro.
Estimativa da Asco (American Society of Clinical Oncology) mostra que cerca de 80% dos pacientes com câncer recorrem a tratamentos alternativos. A sociedade é enfática: não há nenhum indício de que esses tratamentos contribuam para a regressão ou a cura do câncer.
Além de não contribuir para a melhora, terapias alternativas podem interferir nos resultados das terapias-padrão. Muitas dessas substâncias são metabolizadas no fígado e podem alterar a absorção de quimioterápicos, sua eficácia e a eliminação.
É verdade que há compostos com atividades antitumorais bem demonstradas em laboratório, mas existe um longo caminho para serem usados na prática clínica.
São necessários testes laboratoriais e em humanos, com diferentes tipos de tumores e cenários clínicos controlados. E os resultados comparados aos de drogas existentes. Caso sejam mais eficientes, o laboratório pede o registro às agências reguladoras. Nada disso foi feito no caso da fosfoetanolamina.
O oncologista Drauzio Varella costuma dizer: “Se um dia você ouvir que foi encontrada a cura do câncer, não leve a sério”. O problema é quando a Justiça o leva.”