O STJ e a devolução em dobro de cobrança indevida ao consumidor

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O STJ afetou sob a sistemática dos recursos repetitivos (uma só decisão para vários casos sobre mesmo tema) atinente à hipótese em que o fornecedor de produto/serviço deve devolver em dobro o valor cobrado indevidamente do consumidor.

Melhor explicando a quem desconhece o tema, o art. 42, parágrafo único, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor assim prevê:

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

O problema todo gira em torno da questão do “engano justificável”, que evoluiu, na jurisprudência, para “má-fé”. Depois, o próprio STJ alterou ligeiramente o significado para admitir devolução em dobro “quando a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva”.

Ou seja, nessa hipótese – que é a forma mais atual de se analisar, segundo a jurisprudência – deve ser visto se a cobrança indevida poderia acabar sendo feita, ainda que erroneamente, de modo inocente, por qualquer pessoa comum (o chamado “homem médio”, na doutrina).

Se se entender que o homem médio se enganaria e cobraria indevidamente, não há necessidade de devolução em dobro; se, porém, o homem médio fosse capaz de compreender antecipadamente o engano e evitar aquela cobrança, mas optou por mantê-la, deveria devolver em dobro essa quantia indevida. Ou seja, nesse caso invariavelmente se terá má-fé.

Agora a discussão será no sentido de definir se há necessidade de prova da má-fé do fornecedor do produto ou serviço.

Honestamente, essa discussão nos parece uma questão completamente estéril.

Em primeiro lugar, embora haja a premissa de que “a boa-fé se presume a má-fé se prova”, é justamente pela observância da conduta concreta que se nota se a pessoa está de boa ou má-fé, se seus erros são justificáveis ou não. É difícil se falar em espécie de “prova definitiva” nesse âmbito específico do direito do consumidor.

Em segundo lugar, os julgamentos sob recursos repetitivos normalmente firmam uma tese jurídica genérica que efetivamente se pode aplicar a diversos casos sobre o mesmo tema. Não é a hipótese do presente, pois será colocado algo como um “critério de avaliação de julgamento”, que não é passível de se transformar em fórmula estática e que certamente não é superior ao Princípio do Livre Convencimento Motivado.

Aliás, a depender do que se decidir, poderá a tese até mesmo atentar contra o Livre Convencimento Motivado.

Em terceiro, quem arbitrará critérios fáticos, nesse caso, será o STJ, tribunal que, segundo ele próprio diz, não discute propriamente fatos, mas apenas direito, com verdadeira adoração à Súmula nº 07, sendo citada em todo tido de situação, sendo ela aplicável ou não.

Nesse sentido, parece razoável um tribunal não afinado à colheita de provas estabelecer critérios para julgadores acostumados a isso, sendo que, independentemente do conteúdo da decisão em recurso repetitivo, não será aplicável de plano, pois necessária a interpretação em cada situação concreta?

Em quarto, a discussão que o STJ parece estar colocando se distancia completamente do próprio conteúdo da norma acima transcrita, que somente pode ser entendida como atribuição de responsabilidade objetiva também nesse âmbito ao fornecedor de produtos e serviços.

Ora, a lei determina como regra a devolução em dobro, independentemente de dolo, negligência ou imprudência do fornecedor, somente se excluindo essa hipótese em caso de “engano justificável”, ou seja, um engano tão invencível que ninguém medianamente seria capaz de evitá-lo.

Assim, pela lei, a prova da boa-fé e de engano justificável é que cabe ao fornecedor que cobra indevidamente, e não o contrário.

Embora isso nos pareça ter clareza solar, realmente não é assim no Judiciário. E nunca foi.

Sob o argumento de “vedação ao enriquecimento ilícito”, os tribunais sempre ignoraram condutas, no mínimo, desidiosas de empresas que atuam no mercado. Ora, não se deveria discutir enriquecimento nesse caso, mas reconhecer a atribuição legal de uma penalidade para tais hipóteses, estabelecida de plano pela própria lei, com o intuito de coibir condutas irresponsáveis perante os consumidores.

No entanto, admitamos, o Judiciário sempre foi muito tolerante com as empresas ofensoras, sobretudo com as obstinadas na ilegalidade.

Digo, sem medo de errar, que se essa norma legal fosse levada a sério, 99,99% dos casos de cobrança indevida deveriam ter restituição em dobro.

Não são raras as situações, por exemplo, de operadoras de telefonia que continuam a cobrar de seus clientes mesmo após a solicitação de cancelamento do serviço, como se essa solicitação nunca tivesse ocorrido.

Se é pedida a devolução em dobro, o Judiciário, por incrível que pareça, não reconhece que a empresa telefônica está de má-fé.

Como se pode admitir “boa-fé” de uma empresa que se nega a realizar o ato mais basilar de sua atividade (iniciar ou encerrar contratos), sendo que esse tipo de “erro”, coincidentemente, sempre lhe traz benefícios, lucro e crédito perante o consumidor?

Também são comuns casos de bancos que cobram de consumidores taxas que são proibidas não só pela jurisprudência, mas até pelo Banco Central. Quando é pedida a restituição em dobro, o Judiciário também acha que não há má-fé. O que é isso, então?

Aliás, o caso que o STJ julgará como representativo da controvérsia é o de uma senhora analfabeta que contestou descontos de empréstimo consignado que o banco realizou em sua conta, empréstimos esses que ela jamais contratou.

Por incrível que pareça, até aqui os tribunais que julgaram o caso determinaram a devolução simples, pois não visualizaram má-fé na conduta do banco.

É realmente chegado o tempo de se ter que explicar que o céu é azul e que a grama é verde.

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Emmanuel Ramos de Castro
Amante da literatura, poesia, arte, música, filosofia, política, mitologia, filologia, astronomia e espiritualidade.

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