Recentemente o STJ entendeu que o SUS não está obrigado a fornecer medicamentos não registrados na ANVISA a pacientes que deles demandarem, como já abordado em artigos anteriores. E, em novembro passado, o mesmo STJ estendeu, por lógica similar, aos planos de saúde o direito de não arcar com medicamentos sem o mencionado registro na ANVISA.
Em sede de recursos repetitivos, que orientarão todos os julgamentos em curso a respeito dessa matéria, foi fixada a seguinte tese, sob o número 990:
As operadoras de planos de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela ANVISA.
Não se sabe ainda da questão dos usos "off label", mas provavelmente seguirão a mesma lógica atribuída ao SUS, ou seja, o fornecimento provavelmente será restrito apenas aos casos em que o uso esteja autorizado pela ANVISA, encerrando-se o uso extraordinário para casos não expressamente prescritos.
Chamou a atenção, nesse julgamento em que os planos de saúde se sagraram vencedores, a palavra do relator do caso, Ministro Moura Ribeiro, no sentido de que, aos contratos entre usuários e planos, o Código de Defesa e Proteção do Consumidor teria aplicação subsidiária, prevalecendo a Lei nº 9.656/98.
É bem verdade que esta lei dispõe exatamente isso (art. 35-G). No entanto, a jurisprudência majoritária dos tribunais invertia essa lógica, com fundamento nos ditames constitucionais que preconizam o direito à saúde e o direito fundamental da proteção ao consumidor, fazendo com que a legislação consumerista se sobrepusesse.
Há uma tendência de inversão da jurisprudência em ritmo acelerado, modificando o cerne de proteção, saindo do consumidor/usuário para o contrato com o plano de saúde, bem como priorização da aplicação da Lei nº 9.656/98. Por ser um contrato de adesão e extremamente regulado, as vantagens passam para este lado.
As decisões recentes, corroboradas por esta em sede de recursos repetitivos trazem um poder ainda maior para a ANVISA. Se houver demora, burocracia excessiva ou mesmo influência de agentes externos pela não aprovação ou registro de certo medicamento, ele não ficará disponível aos que dele necessitam, seja pelo SUS, seja pelos planos de saúde.
Essa decisão do STJ, é bem verdade, esclarece que determinar que o plano de saúde forneça medicamento sem registro significa dizer que o Judiciário obriga as empresas do ramo a cometerem ilícitos de natureza sanitária.
Mas, é disso que se trata o tema, efetivamente? Se trata de busca por substância perigosa e nociva ou justamente o seu oposto, às vezes a tábua de salvação?
A mesma decisão ainda esclarece que os prejudicados por omissão da ANVISA no registro de medicamentos podem processar a agência, para apurar eventual responsabilidade civil.
Mas, um processo que tramitará por anos para apuração de responsabilidade civil resolverá o problema de quem precisa do medicamento agora?
O tema é bastante delicado, pois ao mesmo tempo em que a autorização de uso para medicamentos demanda pesquisas e exige rigor, e esse rigor exige tempo, sob pena de se admitir qualquer charlatanismo como medicação, de outro, há a verdadeira urgência, pessoas que podem ser curadas com medicamentos ainda não registrados na ANVISA.
Penso que a decisão talvez não seja intrinsecamente errada, mas, talvez não fosse o caso de registrá-la em recursos repetitivos, abreviando as hipóteses de discussão.
A não existência de registro na ANVISA não necessariamente indica falta de estudo do medicamento, mas falta de análise dele no Brasil. Poder-se-ia analisar mais profundamente o caso a caso, observando como outras agências confiáveis de outros países registram cada medicamento e seu uso, como forma de adequadamente fornecê-lo em casos de urgência, quando não houvesse medicamento registrado no Brasil próprio para o tratamento necessário.
O grande drama do Estado moderno é que o Direito foi colocado acima de qualquer outro campo, inclusive da Medicina, em sua respectiva área. A demanda de um profissional médico, indicando o melhor tratamento, vale menos do que uma enorme burocracia, vale menos do que uma série de etiquetas e registros.
É evidente que a ANVISA e seus pares mundo afora possuem função mais do que relevante, absolutamente essencial. Mas, a forma como o Direito encara as funções dessas agências parece já bastante deturpada. Elas servem para proteger a saúde pública, não para prejudicar o acesso à saúde.
No Brasil há ainda como agravante o nosso ambiente institucional. Não é segredo que muitas de nossas agências já foram capturadas pelas poucas empresas que atuam no ramo, comprometendo o interesse geral pelo conflito com interesses específicos.