O Estado do Rio de Janeiro sofre com ações das milícias, que são, simplificadamente, agentes de segurança do Estado (policiais) que passam a fazer uma espécie de "justiça com as próprias mãos", oferecendo "segurança" aos moradores de determinado local, supostamente protegendo-os das ações de bandidos e traficantes. Não é preciso dizer que a "segurança" logo vira extorsão.
Os milicianos, sempre sob esquema de hierarquia, agem em um vácuo, no caso, oferecido pela ineficiência do sistema de segurança pública e a corrupção desenfreada, criando, eles próprios, as novas leis do bairro.
O Direito Tributário possui uma particularidade que em muito se assemelha com isso.
Um estudo de 2014 apontou que desde a entrada em vigor da Constituição de 1988 houve o implemento de quase 5 milhões de normas tributárias, entre leis, instruções normativas, portarias etc.. Isso dá uma média de 46 novas normas a cada dia útil desde então.
É o absurdo dos absurdos, mas revela que o nosso Direito, especialmente o Tributário, é extremamente regulado e, quando falta algum mínimo detalhe, funcionários públicos, comumente, mas não exclusivamente dos mais altos cargos, não tardam a preencher o vácuo deixado.
Na verdade, assim começou, mas já há um bom tempo virou a farra do boi, em que funcionários das receitas, especialmente dos mais altos escalões, fazem o que querem, especialmente em disposições contra a lei, ferindo direitos e criando obrigações para os contribuintes. Mas o mais surpreendente é que quase sempre existe uma norma infralegal a amparar a conduta manifestamente ilegal.
Explico que é a lei em sentido estrito (lei ordinária e/ou lei complementar, a depender do caso) quem tem a capacidade de impor obrigações ao contribuinte, outorgar ou suprimir direitos. Ao Executivo, através das Secretarias Fazendárias e, no plano federal, através da Receita Federal do Brasil, compete a edição de normas infralegais, que possuem mera atribuição de regulamentar o direito previsto em lei, permitindo a sua operacionalização.
Acontece que em muitos e muitos casos as Fazendas – muitas vezes personificadas em suas chefias – chamam para si o papel de legisladoras, criando deveres e suprimindo direitos sem base legal, superando as prerrogativas que lhes foram dadas, usurpando direitos de outros poderes, no caso, o Legislativo.
Um exemplo claro e recente veio da Receita Federal do Brasil. A Medida Provisória nº 783/2017, que instituiu o PERT (Programa Especial de Regularização Tributária), o "Novo Refis" que os empresários tanto esperavam, vedou o acesso ao programa para os contribuintes condenados em âmbito administrativo por sonegação fiscal. Vale dizer que a Medida Provisória tem força de e equivale à lei.
Visando regulamentar esta Medida Provisória, a Receita Federal do Brasil expediu a Instrução Normativa nº 1.711/2017, que estendeu a proibição de acesso ao PERT para qualquer contribuinte suspeito de prática de sonegação.
Olhe a diferença: a Lei (Medida Provisória) veda o acesso do contribuinte condenado em âmbito administrativo (embora a linguagem seja imprópria e até questionável); a Instrução Normativa (ato abaixo da lei, meramente regulamentar) extrapolou e trouxe proibição que a lei não trouxe, impedindo que contribuintes meramente suspeitos ingressassem no PERT.
Nota-se mais e mais que quão mais alta é a função pública, maior se torna a arrogância. Os mais graduados são pródigos em dizer, mesmo sem serem questionados, que "conhecem" o sistema, "como tudo funciona" e, a pretexto de deter o conhecimento prático, começam a legislar conforme a sua conveniência, se tornando verdadeiros justiceiros tributários, mais ou menos como os milicianos citados no início do texto, igualmente à margem da lei.
Os fiscais menos graduados, que estão abaixo na hierarquia, não podem agir senão conforme o mandamento dos superiores, praticando ordens mesmo que delas discordem ou as considerem ilegais, como realmente costumam ser.
De fato, há fiscais que se indignam com a própria conduta do Estado e seus representantes mais altos. Mas essa classe de funcionários públicos, tão combativa em prol de seus direitos, realizando frequentes greves, nunca os vi protestar contra seus superiores, a fim de que lhes fosse permitido atuar conforme a lei, antes de ter que atuar conforme portarias e instruções normativas que percebem ser viciadas.
Já tive a oportunidade de ser ensinado por fiscais fazendários, já tive colegas de estudo desta área e até mesmo alunos e quase todos compartilham do mesmo perfil, de fiéis cumpridores de normas, mas nem sempre das normas que a lei impõe, mas das normas que, às vezes, eles próprios fabricam e consideram justas, mais justas do que a lei.
Não acho que a lei seja necessariamente boa, mas não acho que a solução seja dar esse poder de legislar ao fisco, embora o faça ao seu bel prazer.
É claro que o Judiciário costuma frear esses devaneios cada vez mais comuns, mas é um fator extremamente preocupante, especialmente em relação à segurança jurídica.
Em virtude do imenso número de normas tributárias editadas, impossíveis de se acompanhar, existe uma falsa percepção para os agentes públicos – principalmente entre os mais graduados e que estão mais próximos dos agentes políticos – de que eles podem criar o que quiserem, independentemente do que diz a lei, utilizando a regra do "onde passa um boi, passa uma boiada". Esse exemplo acima transcrito não é exceção, mas vem se tornando a regra.
Pelo contato próximo da matéria, pela grande experiência prática e pela autoridade relativa que possuem, muitos agentes públicos, principalmente em cargos mais elevados, começam a delirar e a pensar "eu sou a lei", mais do que a própria lei em si.
Nesse caso, o vácuo surgido está justamente no emaranhado de normas, na bagunça que eles mesmos fazem, permitindo que se cometam ilegalidades.
Tenho certeza de que muitos deles são extremamente bem intencionados. Mas será que não foi assim que também começaram alguns milicianos cariocas?