Em muitas oportunidades já escrevemos no Blog do Corretor afirmando que a relação com o plano de saúde é de "consumo". Então, por que mais uma vez tratarmos disso?
Porque mesmo isso sendo de certa forma claro para a doutrina jurídica, existem algumas nuances que podem tocar atos civis, e não de consumo, gerando repercussões para o Direito e para o processo.
Como regra, é o Código Civil quem rege as relações patrimoniais havidas em sociedade, tais como a compra e venda, o aluguel, o empréstimo, o dever de reparar etc..
O Código de Defesa do Consumidor é aplicável desde que se trate, efetivamente, de relação de consumo, mas traz fatos e consequências análogas às do Código Civil, tais como os mencionados compra e venda e dever de reparar.
Tendo em vista o número e a complexidade das relações jurídicas atuais, na prática o Código de Defesa do Consumidor é aplicável à maioria dos casos; porém, ele não é geral como o Código Civil, sendo aplicável apenas quando presentes os requisitos que permitem chamar certa relação de relação de consumo.
Pois bem. Diz o art. 2º da Lei Consumerista que Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
A redação demonstra um conceito claro, mas a sua aplicação não é tão fácil quanto parece.
Se é certo que pessoas físicas e jurídicas podem ser consumidoras, só o serão se utilizarem produto ou serviço como destinatárias finais.
Ser destinatário final de um produto ou serviço é utilizá-lo de forma finalística, definitiva, realmente retirar o produto do mercado.
Em alguns casos é simples se verificar isso, mas, em muitos deles, acaba por ser bastante árduo. Isso porque a um mesmo produto ou serviço pode se aplicar tanto o Código Civil quanto o Código de Defesa do Consumidor. Dependerá, afinal, das particularidades do adquirente do produto ou serviço, valendo dizer, se ao consumidor ou simples comprador.
Exemplo: compro uma geladeira para minha residência. Nesse caso, sou, sem sombra de dúvidas, um consumidor. Por outro lado, se um restaurante comprar essa mesma geladeira para refrigerar as bebidas que servirá aos clientes, não será consumidor, pois a utilização dada ao aparelho não é finalística e definitiva, mas serve de insumo a outra atividade.
Se compro um aparelho de pressão para utilizar em minha residência, posso ser consumidor. Se um médico comprar este mesmo aparelho para uso em seu consultório, poderá não ser considerado consumidor.
Se uma pessoa adquire uma caneta para uso geral, será consumidora. Se um advogado adquire a mesma caneta para assinar as petições que elabora, poderá não ser consumidor.
Como se percebe, existem nuances e particularidades de fato que alteram a disciplina jurídica que incide sobre a realidade, resultando em soluções diversas.
Antes observado de forma autônoma e dissociada, hoje também se nota que a jurisprudência alia o já mencionado conceito finalístico, que orienta ser ou não consumidor, ao conceito de vulnerabilidade.
O consumidor é naturalmente vulnerável. E não se quer dizer, aqui, no aspecto econômico, mas no técnico, ou seja, na falta de qualquer conhecimento sobre o produto ou serviço.
De fato, se uma geladeira parar de funcionar, não tenho condições sequer de começar a especular o que pode ter levado a isso. E a maioria das pessoas também teria a mesma dificuldade.
Esse entendimento, que vem ganhando mais adeptos, amplia sensivelmente a gama de consumidores, tornando ainda mais importante ao empresário levar isso em conta em seu plano de negócios.
Isso porque as relações de consumo são as que mais geram pagamento de danos morais, sendo que o processo ainda é facilitado pela aplicação da "inversão do ônus da prova", fazendo com que a empresa tenha que provar que as alegações do consumidor são inverídicas.
Da mesma forma, como regra, a responsabilidade no Direito Civil é subjetiva, dependendo de prova do ato ilícito, da culpa (dolo, imprudência, negligência ou imperícia) e do dano para configurar o dever de indenizar.
Na relação de consumo, a regra é a responsabilidade objetiva, bastando ao lesado comprovar a ação/omissão e o dano. Não importará se o causador do dano agiu ou não com culpa, ainda assim subsistirá o seu dever de reparar o dano.
No caso específico dos planos de saúde, a relação parece simples para os contratantes. Ora, ninguém contrata plano de saúde como meio para o que quer que seja, mas apenas para garantir a saúde própria e a dos familiares. Logo, são consumidores.
Para as corretoras, que comercializam os planos de saúde, o plano é o produto que está na prateleira, fazendo com que não sejam usuárias finais do serviço. Logo, não são consumidoras e a relação é regida pelo Direito Civil.
Outras relações, porém, acabam sendo um pouco mais complexas.
Se uma empresa contrata plano de saúde para seus empregados, os empregados serão consumidores, com toda evidência. Mas e a própria empresa contratante, é ela consumidora ou não?
Pode-se argumentar que a contratação é finalística, pois inexiste decorrência de lucro ou vantagem econômica para ela a partir do contrato. Seria, assim, consumidora.
Por outro lado, a empresa que tem um bom plano de saúde pode ser mais atrativa para candidatos a empregados, servindo como meio de persuadi-los a aceitar a oferta que ela está fazendo, e não a do concorrente. Não seria o plano, pois, um veículo que também beneficia a empresa de forma não finalística?
Essa é a discussão teórica que se tem, que segue indefinida em diversos âmbitos.
No caso dos planos de saúde, existe um tema que é particularmente complexo: o plano é sempre um veículo para um atendimento de terceiro, seja uma clínica médica, um hospital etc.. Como fica a relação quando há o envolvimento desses terceiros?
Isso é difícil pois a atividade médica é, por excelência, uma atividade civil, de modo que para configurar a responsabilidade, é necessária a prova da culpa. O plano de saúde, intimamente ligado ao fato, tem uma relação de consumo e, em tese, possui responsabilidade objetiva. Como ficaria o caso?
Nosso artigo intitulado "Plano de saúde é responsável por erro de laboratório credenciado" pode ser importante para complementar essa compreensão.