O assunto do título é muito espinhoso e não há a menor expectativa de resolver a questão ou dar a última palavra a esse respeito. Em verdade, já nos antecipamos e reconhecemos que vamos sofrer críticas sobre nosso pensamento a respeito do tema.
Mesmo assim, não se pode deixar de opinar sobre a forma curiosa com a qual se posicionaram todos os envolvidos no caso: Supremo Tribunal Federal (STF), Advocacia Geral da União (AGU) e Procuradoria Geral da República (PGR).
O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (CREMERS) ingressou com ação judicial contra o município de Canelas/RS, por meio da qual argumentava que os pacientes do SUS deveriam ter direito a garantir melhores acomodações hospitalares, desde que pagassem a diferença. Isso, para o CREMERS, não acarretaria prejuízos ao sistema de saúde ou quebra de isonomia em relação aos demais usuários.
O processo passou pelas instâncias inferiores e, já no STF, a AGU se manifestou no sentido de que o posicionamento do CREMERS não deve ser adotado, pois isso seria uma “afronta ao princípio da isonomia de tratamento aos pacientes do SUS, atentando contra a prestação de um serviço universal e igualitário de assistência à saúde, permitindo àqueles que dispõem de melhores condições financeiras que paguem ‘por fora’ para ter um tratamento privilegiado em relação aos demais”.
A PGR, por sua vez, manifestou o entendimento de que o SUS deve observar a universalidade e a equidade, sendo que ao Poder Público cabe adotar políticas visando ampliar cada vez mais o atendimento público à população, não podendo atuar para restringir a cobertura do SUS ou dificultar o acesso.
O Ministro Dias Toffoli, relator do caso, opinou que aceitar esse pagamento adicional por melhores condições seria “a instituição de privilégios odiosos desprovidos de respaldo constitucional.”. Continuou dizendo que “Esforços no sentido da promoção da universalidade e da igualdade do sistema de acesso são bem-vindos. Esforços em sentido oposto, como os que aqui se pretende implementar pelo recorrente, são intoleráveis à luz da Constituição da República”.
Como era de se esperar depois da leitura dessas manifestações, a tese do CREMERS foi derrotada, de modo que o STF entende que não pode haver diferenças de classes no SUS, devendo todos beber da mesma água. Mas que água é essa?
O STF, quando parece pretender resguardar a Constituição, pensa na isonomia de maneira puramente teórica, ou seja: quem está na mesma situação deve ser tratado da mesma maneira. E nada pode fazer para evitá-lo.
Claro que estamos partindo do pressuposto de que, existindo diferença de classes, isso não significa que quem não puder pagar será atendido nos corredores do hospital e quem puder pagar será atendido dentro de um quarto. Estou imaginando, por exemplo, que quem não puder pagar ficará em um quarto coletivo, ou um quarto com mais pessoas, enquanto que aquele que puder pagar ficará em um quarto individual, com mais conforto e privacidade.
O STF não só acha isso um problema como considera “intolerável” o cidadão pagar para ter um serviço um pouco melhor. Ora, não estamos dizendo que quem não pode pagar deva ficar desprovido de qualquer atendimento, esquecido e desamparado. A “elevação de classe” seria apenas um benefício pontualmente remunerado.
Tomemos o exemplo de um pedreiro, pai de família. Trabalhou a vida toda, formou seus filhos, se aposentou e agora está no hospital. Como não tinha plano de saúde, está sendo tratado através do SUS. Seus filhos não possuem condições de pagar um plano de saúde ou um hospital particular para que seu pai fique melhor acomodado, mas eles teriam dinheiro para pagar uma diária a esse hospital para que seu pai ficasse acomodado em um quarto privativo.
Para o STF, a ideia dos filhos desse pedreiro é um “privilégio odioso”. Como resultado, os hospitais nunca serão incentivados a melhorar seus estabelecimentos, mas mantê-los no mínimo aceitável para receber pacientes.
Sou advogado, porém, filho de um médico e de uma enfermeira. Sem me preocupar em lembrar perfeitamente das palavras utilizadas, minha mãe sempre dizia que, na faculdade, lhe era ensinado que sua profissão visava propiciar ao paciente a maior liberdade possível dentro das capacidades dele próprio.
Por isso, me lembro perfeitamente de ela se queixar de quartos em que não havia nenhuma janela, nem mesmo um relógio na parede. O paciente não sabia sequer se era dia ou era noite.
Quantos locais ainda não são assim? Mas tentar evitá-los, podendo pagar, ainda que com economias de toda uma vida é apenas e tão somente um “privilégio odioso”.
Mais uma vez: não se espera que se prive alguém de atendimento. Mas se existe uma opção de um conforto um pouco maior mediante um pagamento que caiba no orçamento de certa pessoa, por que ela deve ser impedida de adquirir esse benefício? Ou se tem plano de saúde ou não se poder ter opção alguma de conforto? Parece um certo preconceito com as pessoas que não estão essas pessoas que estão nesse “limbo” entre ter um plano de saúde ou não ter nada. Quem nada tem estará fadado a não poder escalar nem mesmo um degrau em conforto.
Como consequência, os hospitais públicos e filantrópicos, já demasiadamente endividados, não serão estimulados a melhorar suas instalações, como forma de incrementar suas receitas.
Tudo isso em nome da igualdade! Afinal, ninguém quer ser taxado por ter um “comportamento odioso”, não é mesmo?
Impossível não lembrar do grande Winston Churchill, quando, ao falar de certa ideologia política ainda muito viva, que prega a igualdade acima de tudo, assim a definiu: trata-se da distribuição igualitária da miséria.