Por Bruno Barchi Muniz | Advogado
Através do Ato Normativo nº 0003745-80.2021.2.00.0000, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aprovou uma recomendação para que os Tribunais adotem “métodos consensuais de solução de conflitos” em demandas que versem sobre o direito à saúde, especificamente em relação a “ações judiciais que envolvam prestações de assistência à saúde, como o fornecimento de medicamentos, produtos ou insumos em geral, tratamentos e disponibilização de leitos hospitalares”.
Esses métodos, mais específicos, foram transcritos no voto da relatora da medida:
i) que os magistrados, com atuação em matéria de direito à saúde, priorizem, sempre que possível, a solução consensual da controvérsia, por meio do uso da negociação, da conciliação ou da mediação;
ii) que o magistrado poderá designar um mediador capacitado em questões de saúde para realizar diálogo na busca de uma solução adequada e eficiente para o conflito; iii) recomendar a implementação, pelos Tribunais, de Centros Judiciários de Solução de Conflitos de Saúde – Cejusc, para o tratamento adequado de questões de atenção à saúde, inclusive aquelas decorrentes da crise da pandemia da Covid-19, na fase pré-processual ou em demandas já ajuizadas, ou utilize outras estruturas interinstitucionais para a prevenção e solução consensual de conflitos em saúde;
iv) O tribunal que implementar o Cejusc de Saúde deverá observar o disposto na Lei nº 13.105/2015 (Código de Processo Civil), na Lei nº 13.140/2015 (Lei de Mediação), e na Resolução CNJ nº 125/2010, no que couber, especialmente providenciando a capacitação específica de conciliadores e mediadores em matéria de saúde, inclusive por meio de convênios já firmados pelo CNJ, com compreensão sobre saúde baseada em evidência científica, princípios do Sistema Único de Saúde e de consulta a base de dados com Notas Técnicas emitidas por instituições reconhecidas pelos Comitês Nacional e Estaduais de Saúde.
De modo geral, essas medidas em nada alteram o que a própria legislação processual já prevê, acerca da preferência pela autocomposição das partes em qualquer tipo de litígio, havendo até mesmo a expressa determinação de que sejam feitas audiências preliminares visando justamente essa possibilidade de se efetivar acordo.
A experiência dos últimos 5 anos de vigência do atual Código de Processo Civil já demonstrou a ineficiência desse método, a ponto de os próprios juízes dispensarem a tentativa de conciliação na maioria dos casos, com concordância das partes.
O CNJ, porém, na contramão da experiência, pretende forçar a aplicação de um método sabidamente ineficaz. Pior ainda, quer fazer encaixar “negociação, conciliação ou mediação” em uma situação absolutamente descabida.
Analisemos uma hipótese comum desses casos: negativa de atendimento por plano de saúde a um usuário portador de câncer recém descoberto.
Como podem as partes negociar e transigir em um caso desses? O plano de saúde pode “ceder um pouco” e dizer que vai custear parte do tratamento? Ao paciente interessará uma proposta assim, limitada?
E no caso da disponibilização de leitos hospitalares, a pessoa que necessita desse leito tem alguma forma de abrir mão parcialmente de sua pretensão? E o hospital, o que fará? Dirá ao juiz “vamos tirar alguém que está ocupando leito atualmente para ceder o lugar a esse outro necessitado”? Como pode haver acordo a respeito dessas situações?
Honestamente, uma proposta tão ineficaz quanto sem sentido somente poderia vir “do alto”, do CNJ, que é composto majoritariamente por Ministros dos Tribunais Superiores e por outras personalidades indicadas pelos mesmos tribunais, OAB e Congresso Nacional, no aspecto mais político.
Essas pessoas geralmente não lidam diretamente com os dramas dos processos de saúde, senão na esfera da discussão “puramente jurídica”, que muitas vezes é uma discussão meramente de hipóteses, sem profunda atenção aos fatos e suas delicadezas.
Em 2016 já houve proposta, também do CNJ, da criação de oficinas integrando os Núcleos de Avaliação de Tecnologia em Saúde (NATs), que serviriam para municiar os juízes em suas decisões em matéria de saúde (NAT-Jus). Embora a iniciativa aparentemente ainda esteja ativa, jamais encontrei qualquer aplicação prática nos processos (e nem pensamos que funcionaria, desde o início. Já havíamos criticado o projeto em artigo pretérito).
O “novo” formato, por assim dizer, é carente de qualquer efetividade, sendo que, em nossa modesta opinião, deveriam ser ouvidos os juízes de primeira instância e os advogados e defensores públicos, que lidam majoritariamente com essas questões no dia a dia.
E o que normalmente se vê na prática? Negativas indevidas de cobertura por planos de saúde, que são derrotados em 9 a cada 10 processos judiciais que sofrem.
Ou seja, não se tem uma alta judicialização decorrente de grandes níveis de controvérsia, mas, simplesmente, uma completa inadequação dos planos de saúde à interpretação da legislação consolidada pela jurisprudência em casos em que não há como se transigir. É tudo ou nada.
Dito de outro modo: o que falta nesses casos é a efetividade no cumprimento de decisões judiciais!
E os Tribunais, especialmente os Superiores, diga-se a realidade, trabalham para sabotar a autoridade do Judiciário nesses casos, bem como os esforços deduzidos principalmente em primeira instância.
Comumente obriga-se a entidade a prestar o atendimento, ou a fazer autorizar procedimentos, em curto prazo, sob pena de se pagar multa diária. E o que acontece?
As empresas do ramo postergam, adiam e ignoram as decisões judiciais, acumulando multas diárias colossais. Em nossa experiência, raros foram os casos em que essas multas não chegaram às centenas de milhares de reais, devido a descumprimentos enormes, de meses e até mesmo anos.
Quando chega o momento de o advogado executar (efetivamente cobrar) a multa, o juiz de primeira instância normalmente mantém a cobrança de todo o valor; mas ele é sempre muito diminuído nas instâncias superiores. R$ 100 mil se tornam R$ 5 mil sem muito esforço, sob o argumento de “desproporcionalidade”, de que a multa se tornou exorbitante, ultrapassou a necessidade da causa etc..
Só que a multa atingiu esse patamar por si só ou por causa da desobediência de quem estava obrigado a agir?
Enfim, fato é que o grande problema da judicialização da saúde reside em o próprio Judiciário revogar a autoridade de suas decisões, estimulando comportamentos que geram processos judiciais. A desobediência é premiada com reduções de valores e penalidades.
Houvesse garantia de autoridade dessas decisões, o cenário certamente seria outro e não se recorreria a soluções como a apresentada pelo CNJ, que simplesmente busca tapar o sol com a peneira.