Saúde nas cordas

agenciaweber

agenciaweber

 

Estamos cercados. Qualquer página de jornal nos engole com escândalos, crises, déficits e depressão pós-eleição. É como um complô. Estamos sendo demitidos de nosso espaço de esperança, de ambição e de utopia. Em menos de um ano fomos comprimidos às cordas de um ringue, onde jabs, hooks e uppercuts nos convidam à lona. Quem saltita no ringue da Saúde, por exemplo, está perplexo com o massacre que vem pela frente.

A Saúde Suplementar levanta os punhos, protege a face e espera pelos golpes: com o desemprego chegando a 7,5% (sem panorama de redução), e um capital de beneficiários sustentado por planos empresariais (67%), é pouco provável que o fígado do setor não deixe de acusar os golpes. A inflação setorial (VCMH), que já empinava 18% em fevereiro de 2015, deve aplicar outros jabs-de-esquerda até o final do ano. O SUS, por sua vez, recebeu do ajuste fiscal um gancho no baço de R$ 11,8 bilhões, ou seja, uma redução de custeio por volta de 11%. Estados e municípios, que já passam a maior parte do tempo nas cordas, podem sentir o gosto da lona com mais intensidade. Tudo isso sem falar no nível de investimento que o empresário vocacionado à Saúde já “promete deixar para a próxima luta”.

É pouco provável que esse ambiente de descrença e frustração alivie-se em curto espaço de tempo. Mesmo com o impeachment do mau humor, ou a renúncia do golpe baixo, os efeitos desse pugilismo peso-pesado vão longe. Empresários, como boxeadores, precisam de regras claras e segurança política. As taxas de crescimento do país (PIB), por outro lado, lembram o árbitro da luta, que assiste a tudo e quando um deles acusa o golpe e dobra as pernas ele entra em cena e metodicamente abre a contagem …3…2…1…-1… Ao ouvi-lo, o perdedor ensanguentado deixa-se ficar na lona. Uma nova tentativa de levantar-se pode acarretar outra saraivada de golpes.

Há uma expressão muito utilizada na economia nacional, que faz investidores, empresários, analistas e qualquer indivíduo minimamente endividado arrepiar, é a tal reunião-do-copom”, um eufemismo misantrópico que todo mês golpeia nossas cabeças com potência holyfieldiana. Com explicações que só economistas entendem, a reunião-do-copom é pródiga em nos socar com a jurostentação”, que nada mais é do que outro eufemismo para explicar porque os juros cobrados no país há mais de meio século são campeões mundiais pesos-pesados. Como grande parte dos hospitais está na enfermaria do sistema bancário, é natural que se pense em uma nova escalada de leitos públicos sendo desativados, visto que desde 2010, quando as planícies econômicas estavam floridas, quase 15 mil leitos de internação foram fechados.

O setor farmacêutico também fará a sua parte, sem deixar, é claro de receber alguns golpes. Depois de crescer 13% em 2014 (receita nominal), a indústria, que tem 90% dos insumos vindos do exterior e preços dos produtos controlados pelo governo, amargará uma retração sensível com a escalada do dólar em 2015. Mas o setor é bom lutador, tem experiência, agilidade e sabe como ninguém repassar os golpes ao consumidor.

Médicos, profissionais liberais, também já se preparam para uma nova onda de embates com as empresas da Saúde Complementar (como se essa disputa algum dia tivesse arrefecido). A pressão estará no ringue socando todos os players, e os médicos, ícones da Cadeia de Saúde, não terão descanso. Trata-se de uma luta pesada, sem vencedores, sem vencidos, e só um nocauteado: o paciente-beneficiário. Este, por sua vez, está proibido, por lei aprovada em regime de urgência no Congresso, de ficar doente. Não há muito que fazer. Qualquer tentativa rebelde de se adoentar poderá custar-lhe o patrimônio, e se não o tiver poderá significar entrar para as estatísticas.

Os usuários do sistema nacional de Saúde, mesmo que saiam às ruas todos os dias com bandeiras, panelas, faixas e palavras de ordem, terão de engolir doses poderosas de anti-inflamatório para reduzir os hematomas dos golpes que os próximos dois ou três anos lhe reservam. Mas, uma parte deles bem que merece alguns cruzados de esquerda. Afinal, alguém votou em alguém que hoje nos comprime nas cordas do ringue. Alguns-muitos apertaram o botão e catapultaram alguns-poucos para a tribuna de honra. Terão mais de três anos de enxaqueca para aprender a pensar antes de sair apertando botões.

Ocorre uma diferença. Se existe uma área acostumada a surras e às grandes batalhas é a indústria da Saúde. Não só no Brasil, como em qualquer outra nação. Apanha muito, mas também se levanta com grande gigantismo e vigor. Sua praia é a crise, seus adversários só se multiplicam, mas sua capacidade de se autorreerguer é ilimitada.

Enquanto o país faz a sua travessia, tentando voltar a crescer, a Cadeia de Saúde tem uma ótima oportunidade de se reinventar. Existem reformas que só podem ocorrer em momentos de crise profunda. Em 2008/2009, quando os EUA amargavam a pior crise econômica das últimas quatro décadas, seu Sistema de Saúde conseguiu dar saltos geométricos na direção vertical (expansão do Registro Eletrônico de Saúde (EHR), por exemplo), como na horizontal que possibilitou uma inclusão superior a 15 milhões de indivíduos no sistema de cobertura sanitária (Obamacare). Em meio a controvérsias vindas de todas as direções, o país foi capaz de dar um salto reformista que entrará para a história contemporânea da nação.

Quando o Reino Unido rastejava pelos escombros da Segunda Grande Guerra, amargando toda a sorte de sofrimentos e privações, com um povo devastado pelos bombardeios nazistas, Aneurin Bevan, Ministro da Saúde, lançou em 1948 o National Health Service (NHS), o primeiro sistema de saúde público universal, integral e gratuito. Quase 70 anos depois ele continua a ser um pilar da sociedade britânica e um exemplo de que é possível ser inovador em meio aos frangalhos de uma guerra. Mesmo o Brasil, pós-redemocratização, saindo de inúmeras dificuldades de uma nação sequestrada pelas garras da ditadura militar, foi capaz de parir o Sistema Único de Saúde (SUS) no final dos anos 80, mostrando ao mundo e a seus cidadãos que era possível ser livre e ser justo.

Agora é o momento de empresários, empreendedores, economistas, a comunidade médica, a manufatura de equipamentos médicos, consultores, políticos e todos os demais que gravitam em torno da Saúde, sentar ao redor de um bule de café e refundar as matrizes do sistema nacional de saúde (público e privado). É hora de alargar os passos e pensar em duas ou três décadas à frente, antes da próxima crise chegar. Quando todos caminham por entre as curvas da crise econômica, quando não sentimos mais os pés e a areia movediça sobe por nossos braços, existe pouco espaço para movimentá-los panfletariamente. Parece que os braços só conseguem alcançar um braço ao lado, que também afunda, mas que juntos podem construir um novo modelo de salvação.

É tolice achar que a crise é um feudo de oportunidades. A crise é um desastre, mas ela nos ensina o quão tolo fomos de não pensar nela antes. Reformas! Essa é trincheira. É lá que devemos todos nos encontrar. Usar nossa criatividade, ousadia e determinação para promover renovações profundas. Mudar os modelos de remuneração médica, transformando também a relação médico-paciente através de contatos remotos, assíduos e menos assimétricos. Redesenhar o nosso modelo de atenção primária, sem deixar de aproveitar o grande o esforço que já foi feito. Repaginar as relações entre o Estado (SUS) e a iniciativa privada (Suplementar), eliminando uma composição esdrúxula de forças que não é mais sustentável no Século XXI. Alçar voo na direção de prover educação sanitária básica, desde os primeiros anos da infância. Ter a ousadia de enfrentar abertamente a promoção à saúde, sem medo, sem retórica e sem eufemismos.

Há muito que reformar. Essa é a hora. Quando a crise aliviar, não importando quando isso ocorrerá, ou estaremos preparados para um novo tempo, ou estaremos como estamos agora: de cócoras, suando frio e lambendo as cordas do ringue.


Guilherme S. Hummel  é consultor, pesquisador e head mentor do eHealth Mentor Institute (EMI).  Autor dos livros: “eHealth – O Iluminismo Digital chega a Saúde”;  “ePatient – A Odisséia Digital do Paciente em Busca da Saúde”, “eDoctor – A Divina Comédia do Médico e a Tecnologia” e  “SUS encontra o NHS”.

Compartilhar:

Facebook
Twitter
LinkedIn
Email

Deixe um comentário

Você pode optar por ficar anônimo, usar um apelido ou se identificar. Participe! Seus comentários poderão ser importantes para outros participantes interessados no mesmo tema. Todos os comentários serão bem-vindos, mas reservamo-nos o direito de excluir eventuais mensagens com linguagem inadequada ou ofensiva, caluniosa, bem como conteúdo meramente comercial. Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

JORNALISTA

Emmanuel Ramos de Castro
Amante da literatura, poesia, arte, música, filosofia, política, mitologia, filologia, astronomia e espiritualidade.

Categorias

Veja Também:

Fale com o Blog!