A saúde mais ou menos universalizada no Brasil – Parte 3: Impacto para os hospitais e profissionais da saúde

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No primeiro artigo desta série o tema era o posicionamento do Judiciário negando, na prática, a dicção constitucional de que a saúde é "direito de todos e dever do Estado", já que os considerados não carentes podem não ter acesso ao tratamento público, justamente por, no entender de nossos juízes, poderem arcar com custas desse tratamento.
 
No segundo, falamos sobre o fato de o Estado estar cobrando dos planos de saúde o custo do tratamento de seus segurados, quando estes acabaram se utilizando de tratamento público, como se o dever estatal de prover saúde tivesse cessado em virtude da contratação de plano de saúde.
 
Perceba-se que nos artigos anteriores nada mais fizemos do que confrontar o que diz a Constituição Federal e o que acontece na realidade.
 
No primeiro caso, há a negação do direito constitucional à saúde por meio do Estado, enquanto que no segundo caso o Estado transfere a terceiros uma despesa que sempre lhe foi própria.
 
Como dito no primeiro artigo, esta é, em verdade, uma crítica da necessidade dos brasileiros de "leis", como se o simples escrito no papel fosse, por si só, capaz de alterar imediatamente realidades.
 
O que quero dizer com isso é que muitas vezes existem leis ou projetos de leis ou anseios sociais que importam em onerosidade insustentável pela criação de altos deveres para uns e direitos irrestritos para outros.
 
Um dos exemplos que usei no primeiro artigo foi a pretensão do "passe livre", como se a simples existência de uma lei determinando-o fosse capaz de eliminar custos com transporte público. Alguém sempre pagará o preço.
 
E uma das maiores "vítimas" das consequências desse pensamento são os hospitais, em especial os públicos e filantrópicos.
 
Os hospitais e os médicos são os para-raios do sistema de saúde brasileiro, pois estão na linha de frente do "direito à saúde" e no contato com o público, que, insatisfeito (e com razão) com os serviços públicos, dirige aos profissionais e estabelecimentos a sua ira, ignorando todo o sistema que está por trás dessas pessoas, emanando da Constituição. Isso é um prato cheio para aberrações jurídicas, sociais, legislativas e políticas, sendo que esses últimos, aproveitando-se da própria ineficiência, criam programas populistas e igualmente ineficientes.
 
Alguém se lembrou do "Programa Mais Médicos" enquanto lia isso? Pois é, ele é fruto disso, um "programa" no qual se condensou todas as aberrações acima mencionadas e ainda se criou a oportunidade de enviar R$ 40 milhões mensais para sustentar uma ditadura falida.
 
Quando o povo diz que quer "médicos" e "hospitais", através dessa fala simplória deve ser entendido que ele quer "cuidados de saúde". Mas quem pagará por isso?
 
Um famoso deputado estadual de São Paulo criou um projeto posteriormente convertido em lei estadual que proíbe os hospitais e clínicas particulares de exigirem caução ou qualquer outra garantia para internação de paciente em caso de emergência e urgência.
 
Essa lei possui uma característica humanitária notável. Mesmo assim, vale lembrar: e depois, quem paga a conta? Se ninguém pagar, o prejuízo é do hospital e nada há a se fazer. Esse é um claro exemplo de como uma lei não é capaz de alterar plenamente a realidade, como mencionamos bastante ao longo dos três artigos.
 
Alguns poderiam argumentar que no caso de hospitais públicos ou filantrópicos quem pagaria seria o SUS, ou seja, o Estado. Mas as coisas não funcionam dessa forma.
 
Para desfazer esse "mito", vamos ignorar, em primeiro, o fato de o SUS pagar às vezes centavos pela realização de certos procedimentos médicos. Mesmo que o pleito de muitos médicos de atualização de 100% das tabelas do SUS se concretize, o preço pago por certos procedimentos continuará na casa dos centavos.
 
Ignorando-se isso, os hospitais filantrópicos, por exemplo, recebem dinheiro do SUS para o custeio de suas atividades, podendo, ainda assim, prestar atendimento particular.
 
Entretanto, a legislação determina que para que continuem a receber verba do SUS e mantenham o status de hospital filantrópico, sem a tributação sobre sua renda, patrimônio ou serviços, seu atendimento de pacientes da saúde pública deve ser de no mínimo 60%.
 
Se o dinheiro encaminhado a essas entidades pelo Estado via SUS sobrar (o que, convenhamos, é muitíssimo raro de acontecer), os administradores deverão devolvê-lo.
 
Isso, é verdade, faz todo sentido para o ramo do Direito Financeiro, já que esse dinheiro tinha destinação específica. Sobrando, deve voltar aos cofres públicos.
 
Mas, na prática, acaba sendo uma penalização ao bom administrador que, reconheça-se, fez quase um milagre. Mantido esse dinheiro na conta do hospital, poderia ele ser reinvestido no próprio hospital e em prol da população, já que, lembre-se, as entidades filantrópicas, por essa condição, não podem distribuir lucros.
 
Por outro lado, se o dinheiro enviado pelo Estado via SUS não for suficiente para custear as despesas do hospital no atendimento público, e é o que acontece na quase totalidade dos casos, é o hospital quem deve arcar com essa diferença, não havendo responsabilidade do Estado em prestar-lhe qualquer tipo de auxílio.
 
É óbvio que a conta nunca fecha, e o Estado se exime de suas responsabilidades – repita-se: responsabilidades – pois, lembre-se que, pela Constituição, A saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196).
 
E um último detalhe: se em um hospital público não existe certo tipo de equipamento, ou se ele está quebrado e sem verba para conserto e sucede resultado lesivo a um paciente em decorrência disso, quem é o corresponsável em âmbito jurídico? O hospital, a equipe médica que prestou atendimento, enfim, toda a linha de frente.
 
Concluímos essa série de artigos deixando claro que, na prática, totalmente ao inverso do mandamento constitucional, não é o Estado quem presta saúde à população. Quem presta saúde à população é ela própria, obrigada a pagar por serviço que deveria ser público por talvez não possuir o título de "carente".
 
Quem presta saúde à população é o plano de saúde, obrigado a pagar por procedimentos de saúde públicos apenas por ter relação contratual com um paciente que preferiu o atendimento público ao convênio.
 
Por fim, quem presta saúde à população são os hospitais e médicos, pois são eles quem verdadeiramente financiam o SUS e, consequentemente, o Estado, pois são eles os que principalmente tomam os prejuízos que constitucionalmente deveriam ser do Estado, os gastos com saúde.
 
Diante de tudo isso, pergunta-se: como se pode dizer que a saúde brasileira é universalizada e atribuída ao Estado?
 
A Constituição, de fato, traz o cenário da saúde de forma irreal, como já dissemos exaustivamente no primeiro artigo da série, apresentando-se quase que como uma carta de intenções.
 
Mas, ainda assim, é a Constituição. E mais do que descumprida, ela vem sendo sistematicamente deturpada, sendo que os ônus estabelecidos ao Estado vem sendo continuamente jogados sobre os ombros dos que diretamente lidam com a relação de saúde: pacientes, planos de saúde, médicos e hospitais. Em relação a esses dois últimos, o Estado, não bastasse, ainda os demoniza e os joga contra o povo sem absolutamente nenhuma piedade, como forma de encobrir seus próprios erros.
 
Ao iniciar essa série de artigos, tinha apenas a intenção de expor como é contraditório o que diz a lei e o que é a realidade, como crítica ao próprio povo que exige o impossível. Enquanto fui escrevendo e refletindo, impossível não notar, além disso, como as "pontas de iceberg" destacadas nesses três artigos lutam para fazer sua parte mesmo em um mar de lama.
 
Mesmo não sendo comum esse tipo de manifestação em artigos simplórios como este, finalizo este texto dedicando-o a todas as pessoas honestas envolvidas em situações de injustiça causadas pelo sistema de saúde brasileiro, desde os pacientes, passando por toda a cadeia de oferta de serviços de operadoras e planos de saúde e chegando a administradores hospitalares e todos os profissionais da área de saúde.
 
Mesmo não lhes cabendo o dever constitucional, são vocês quem de fato materializam o "direito de todos".

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Emmanuel Ramos de Castro
Amante da literatura, poesia, arte, música, filosofia, política, mitologia, filologia, astronomia e espiritualidade.

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