O aumento da judicialização da saúde é algo alarmante para o bolso do povo, do Judiciário e do Estado, que é, afinal, o bolso do povo.
A Constituição Federal promete mundos e fundos, saúde boa e gratuita para todos, enquanto que não é capaz sequer de remunerar os principais hospitais do país. Quem dirá os hospitais dos interiores, os postos de saúde e outras entidades correlacionadas.
Mas foi o povo quem assim quis, é sempre ele quem prega possuir e deter os mais diversos "direitos".
O fato de que muitos políticos de sucesso são mentirosos, não é exclusivamente reflexo da classe política, é também um reflexo do eleitorado. Quando as pessoas querem o impossível somente os mentirosos podem satisfazê-las (Thomas Sowell).
E, não há dúvida, os constituintes de 1988 tinham um talento especial para prometer. E o pior de tudo é que boa parte ainda está aí, nos mais altos escalões. Se tiver curiosidade, acesse a página da Constituição Federal de 1988 e veja, no final, quem foram os constituintes. Apenas de passagem, cito que lá estão nomes como Aécio Neves, Edison Lobão, Fernando Henrique Cardoso, Henrique Eduardo Alves, José Serra, Luiz Inácio Lula da Silva, Michel Temer, Paulo Paim, Renan Calheiros e Roberto Freire.
Ajudaram a prometer a ajudaram a não cumprir. Na realidade, a Constituição Federal de 1988, especialmente no aspecto da saúde, é impraticável. Mas, se lá está escrito, algum valor deve ter, não é mesmo?
Com base nisso, as pessoas começaram a exigir os tais direitos que lá estão colocados. De onde vai tirar o dinheiro para cumprir o dever correspondente ao direito, não se sabe. Problema do outro. Mas se tem o direito.
Houve um aumento de 63% nos processos que tratam sobre fornecimento de saúde no Brasil em apenas três anos. De 2011 para 2014,o salto foi de 240 mil para mais de 392 mil demandas.
De tão alarmante, começaram a surgir propostas para tentar conter ou minorar o avanço desses processos. Surgiram os Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NATs), com a proposta de tentar subsidiar os juízes com informações técnicas. Não pegou e nunca irá pegar nesse formato, tendo em vista que há uma prevalência pessoal e processual do Estado e dos planos de saúde nesses atendimentos.
Os juízes, é claro, percebem que, nesse formato, haverá um desequilíbrio entre as partes, talvez priorizando interesses dos devedores da saúde – leia-se: Estado e planos de saúde. Do ponto de vista processual, questiono até a legalidade desse formato, em razão da disparidade na produção de prova das alegações, desde o início do processo.
E não sou só eu quem pensa assim. Resultado: os juízes solenemente ignoram os NATs e o investimento feito pouco serviu.
Pouco menos de um ano atrás, o Ministério da Saúde passou a sugerir criação de varas exclusivas para julgar procedimentos de saúde. Em São Paulo, por exemplo, há um déficit considerável de juízes, servidores e outras pessoas de apoio. Devemos destacá-las ainda para novas funções específicas? E todo o resto, como fica?
Diariamente lidamos com o problema da falta de especialização dos julgadores. Quem trabalha com setores muito específicos, como Administração Pública e Tributos, sabe o quanto de formação falta a quem julga, criando, muitas vezes, decisões genéricas, rasas, desconectadas com a realidade ou pautadas em estereótipos completamente falsos.
A questão jurídica da saúde no Brasil não é particularmente complexa. Sem embargo da necessidade constante de aprofundar estudos, o direito à saúde, pela Constituição, tem um aspecto extremamente amplo e, estatisticamente, aquele que pleiteia as mais diversas questões relacionadas à saúde perante o Judiciário conquista o reconhecimento do direito em 80 a 90% das vezes. Ou seja, de cada 10 pessoas que ingressam com ação, 9 estão com a razão, de acordo com o Judiciário.
Isso revela que o problema real não é jurídico, nem de complexidade das causas, mas de eficiência e capacidade de se resguardar tudo o que foi prometido no tal "livrinho", como diz Michel Temer.
Não é necessária uma enorme especialização para compreender as causas, especialmente quando se tem uma outorga ampla e irrestrita de direitos, como faz a Constituição Federal. Critérios técnicos de medicina não são relevantes para uma decisão quando o Estado é obrigado a tratar tudo, da unha encravada ao tumor cerebral.
O Brasil possui uma estranha confiança de que os problemas começam a se resolver pela teoria jurídica, e não pela prática dos fatos do mundo real. É um vício do povo com a mente moldada pela burocracia sufocante e pelo formalismo legalista. Surge o raciocínio do "se não está na lei, não está no mundo.".
Que tal começarmos a remanejar nossos esforços?