A ilusão do sistema universal de saúde começa a ruir

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Quem não conhece pelo menos umas cinco piadas sobre nosso o sistema público de saúde?

A crítica pela comédia, seja a artística, seja a popular, é generalizada, desde o tempo para agendar uma consulta, atendimento ou procedimento, até a (falta de) rapidez com que as pessoas são atendidas, já que a fila é interminável, além da falta de equipamentos e itens essenciais, seja nos hospitais públicos, seja nos postos de saúde.

É, com evidência, uma piada trágica.

Mas a piada não vem propriamente da tragédia das pessoas que sofrem, mas do descompasso completo entre o que a Constituição e a Legislação prometem em matéria de saúde – e assim a população acredita – e o que efetivamente se está provendo.

Já disse em muitos artigos que, conhecendo a posição de profissionais e administradores de saúde e de estabelecimentos de saúde, sei que o trabalho de muitos é heroico e que as suas vitórias são pírricas.

O sistema é intrinsecamente ruim e muitas de suas normas e burocracias excessivas potencializam isso.

De pelo menos 15 anos atrás até hoje, houve um salto gigantesco de ações judiciais pedindo que o Judiciário obrigue o SUS a disponibilizar medicamentos, tratamentos etc. para alguns indivíduos, sendo que esses medicamentos ou tratamentos não estão disponíveis na maioria dos casos por serem muito caros, muito específicos, que demandariam uma reversão da lógica da universalidade para uma especificidade.

E, talvez, esse seja o problema. Um sistema pensado para atender 200 milhões de pessoas precisará focar no que mais acontece e esquecer do que menos acontece. A promessa, no entanto, é indistinta: saúde "gratuita" para todos.

Essa loucura não é uma exclusividade nacional e está em muitas Constituições dos modernos "Estados Sociais". Mas, provavelmente, não há outro país que controle tanto a iniciativa privada no mercado de saúde e tenha tanta gente precisando do sistema público de saúde como o Brasil.

De fato, mundo afora, os sistemas universais acabam atendendo apenas a parcela minoritária mais pobre da população, pois as demais conseguem pagar planos de saúde privados e não depender do setor público. Aqui, a lógica é a inversa: uma minoria se tratando no setor privado e a esmagadora maioria dependendo exclusivamente do SUS. Isso é evidente, pois o Brasil é, afinal, um país tremendamente pobre.

É claro que não tem como dar certo e é claro que todo mundo já percebeu que as Constituições modernas, os documentos mais importantes de um povo, são pouco mais do que uma fraude. Com isso, os juristas começaram a teorizar para "relativizar" os impossíveis direitos que o Estado promete indistintamente a todos.

O primeiro caso de que se tem conhecimento da aplicação da "Teoria da Reserva do Possível" surgiu na Alemanha em 1.972.

Nele, esclareceu-se que a pretexto de a Constituição Alemã dizer que “todos os alemães têm o direito de livremente escolher profissão, local de trabalho e de formação profissional”, isso não seria, de fato, possível, mas que seria disponibilizado dentro da "reserva do possível", ou seja, dentro da possibilidade financeira de o Estado bancar esses "direitos", que, como se viu, não são tão "direito" assim, já que não possuem, propriamente, um "dever" correspondente.

Essa teoria é muito conhecida por aqui e já teve altos e baixos, mas, em matéria de saúde, os juízes, de maneira geral, comumente obrigam o Estado a custear medicamentos ou tratamentos a quem dele necessitar, sem que se questione o valor ou de onde virá o dinheiro para custear isso.

Na prática, significa o seguinte: o SUS é composto e gerido, no âmbito público, pela União, Estados e Municípios. Assim, quem quer um tratamento/medicamento especial processa esses três entes, em conjunto. O primeiro a tomar conhecimento do caso e ser liminarmente obrigado a disponibilizar o tratamento é o município, sempre o primo mais pobre dentre esses três.

Então, o município, sempre mais carente do que os demais entes, está na linha de frente e não raras vezes precisa usar 1 a 2/3 de seu orçamento total da saúde para custear o tratamento de uma só pessoa doente,ou de um pequeno grupo.

Isso é a realidade em municípios pequenos, que são a maioria. Mesmo que se transferisse essa obrigação apenas para os Estados ou para a União, o impacto continuaria sendo enorme, como de fato o é.

É possível se fazer uma verdadeira gestão de saúde com um cenário assim, com grande parcela do orçamento sendo comprometida, literalmente, da noite para o dia?

Vendo essa realidade, algumas decisões judiciais já começam a mudar o entendimento, muitas vezes para situações absolutamente terríveis, mas não irreais.

Como já mencionado em artigo anterior, um estudo do Ministério da Saúde identificou que 90% do gasto extraordinário decorrente das decisões judiciais (judicialização da saúde) foi para a compra dos mesmos 10 medicamentos (de pouco mais de R$ 1 bilhão, equivaleu a R$ 900 milhões).

Recentemente, uma decisão judicial de Santa Catarina que negou oferta de medicamento a uma pessoa foi no sentido de que ao invés de realizar a prestação universalizada e igualitária da saúde, o que se estava fazendo era praticar uma desigualdade, elevando um indivíduo em detrimento da maioria da população.

Foi reconhecer, afinal, que as pessoas não são iguais e têm necessidades diferentes, em que pese a universalização. Pode parecer algo trivial, mas foi isso que faltou pensar ao se universalizar a saúde na Constituição. Partindo do princípio de que a intenção era mesmo legítima, e não uma mentira, desde o princípio, é claro.

Outra decisão proveniente de São Paulo fez uma conta macabra: certo paciente precisava de um medicamento extremamente caro e, ainda assim, havia uma alta probabilidade de que, mesmo com o medicamento, morresse em período muito curto. O juiz negou o medicamento ao paciente, visando evitar comprometer os cofres da saúde.

Veja só que a realidade confrontada com a ficção jurídica da Constituição fez com que o juiz tomasse uma decisão utilitarista, terrível, absolutamente dramática, que ninguém gostaria de tomar. Mas, apesar de tudo isso, a decisão está totalmente dentro da lógica de um sistema "igualitário e universalizado".

Em qualquer âmbito, sempre que se tem uma coletivização forçada, por meio de lei, não natural ou cultural, o indivíduo deixa de ser indivíduo e passa a ser estatística, vinculado a alguma perspectiva. Normalmente é a utilitarista, baseada, modernamente, na "função social" que o indivíduo teria.

E é assim que o sistema começa a ruir. A pretexto de atender a todos, vamos atendendo somente alguns, muitas vezes apenas os casos simples, do jeito que der. Com o tempo, esses "alguns" vão diminuindo cada vez mais, até termos nominalmente toda a saúde do mundo para todo mundo e, realmente, apenas as doenças sem qualquer esperança de tratamento.

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Emmanuel Ramos de Castro
Amante da literatura, poesia, arte, música, filosofia, política, mitologia, filologia, astronomia e espiritualidade.

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